O ALIENÍGENA (PARTE XX)
Clauder Arcanjo*
Pintura Cangaceiros, de Adriano Santori.
— Lucas San, você por aqui?!
— Professor Galvino! Você?!
— Claro que sou eu. Estou também nesta peleja. Graças a Deus que temos conosco uma guerreira da estirpe de Madame Brizolete Hernandes. Ela seguiu há dias com mais três para… Mas me fale: o que o trouxe às terras de Licânia? Não o sabia interessado nessas coisas… Como posso dizer, amigo? Nesses mistérios alienígenas — declarou Galvino, inquirindo-o, ainda não de todo refeito da surpresa daquele encontro.
João Américo observava de longe aquela conversaria, estranhando tamanha coincidência. Encostou-se como se desinteressado, observando o recém-chegado, de ouvido atento ao que movia o diálogo dos dois.
Lucas San encheu o peito de ar e, em seguida, correu os olhos pelo sopé do Serrote da Rola, observando a geografia das terras nas proximidades da várzea do rio Acaraú, impressionado com o verde das copas das oiticicas, bem como com o farfalhar ritmado das palhas das carnaubeiras.
— Belo, belíssimo lugar. Quem vê tanto sertão não imagina um oásis assim, meu caro professor! Lembro-me do vale do Nilo, aluvião é sinal de fartura certa. Concorda?
Professor Galvino, com a aproximação do protofilósofo de Licânia, dividiu a atenção com o amigo, perdendo o que lhe foi indagado:
— Ahn, ahn… Não entendi a última fala sua, Lucas San. Poderia repetir?
— Deixe pra lá. Vamos mudar de assunto. Pelo que entendi, a pessoa mais corajosa nestas bandas usa saia; não é mesmo, professor? — proseou Lucas San, arrancando um riso pálido de Galvino, porém gerando o primeiro mal-estar com o João Américo. Este ajustou o cinto na cintura magra, protestando alto:
— Se vem para se juntar à nossa luta, seu Lucas, quero lhe avisar que aqui se briga com faca e rifle, nunca com a língua. Aliás, por estes desmundos já cortamos a de muitos. Em terra de demasiado falatório, pouco se trabalha e menos ainda se luta. Fui claro?
Paulo Bodô riu baixinho ao perceber que o visitante mudou de cor ligeiro, mergulhando numa palidez cadavérica, sem falar que ele passou a tramela na boca, ficando calado como se já nascera mudo.
Professor Galvino resolveu não tomar partido; nunca vira o João Américo tão zangado. Apesar da situação deveras engraçada, não esboçou uma nesga de riso sequer, achando tal atitude a mais prudente.
Zé Aguiar se aproximou, servindo uma dose da pinga serrana ao visitante, selando uma paz provisória:
— Tome uma, senhor Lucas. Isso é um santo remédio para fazer o sangue voltar a correr pelo corpo.
Cabo Jacinto Gamão, que há dias se preparava para o primeiro treinamento com a legião da retaguarda, não teve dúvidas de que aquele cabra se juntaria aos homens sob o seu comando. E, a fim de evitar um novo entrevero do assustado homem com o João Américo, ordenou:
— Retaguarda, em marcha! — Percebendo que o amigo do professor Galvino não se mexia, estático de medo, deu-lhe um tapa no pé da orelha, tocando-o em direção aos seus comandados.
Goiaba, então, latiu; até hoje muitos viram naquele latido o primeiro sinal de vida após o estranho retorno do valioso cão.
Seguiu-se um estranho rumor entre os presentes.
— Silêncio! Preciso decifrar o recado que nos traz o valoroso Goiaba — ordenou João Américo.
Ele se agachou, afagou a cabeça do Goiaba e, após lambidos trêmulos do apavorado mascote, quedou, cabisbaixo.
Minutos depois, retirou-se para o ponto mais alto do Serrote da Rola, isolando-se de todos.
Só retornou de lá após três dias e duas noites.
— Pálido como se tivesse visto (ou ouvido) um fantasma! — declara-nos, assustado, Baltazar do Bozó.
Não sei, confesso perante minha meia dúzia de fiéis leitores, se terei coragem para descrever tamanho pavor: do cão e do filósofo.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.