MULHERES FANTÁSTICAS (XIV): A MULHER CANÇÃO

— Fale, homem! Este silêncio lhe faz mal. Desembuche, estou aqui, sou seu amigo.

— Obrigado, mas…

— Cuidado com o coração! Dizem que quem se cala e se tranca, o coração se atravanca.

Gonçalo se encaminhou para a janela. Do lado de fora, a pasmaceira do final da tarde. Apesar dos rogos do amigo, ele não tinha a menor vontade de se abrir. Há sete dias recolhera-se na casa de Diniz e, estando lá, pouco conversava. Metido com uma tristeza funda, os olhos cavos, um desgosto só.

Diniz resolveu diminuir a pressão sobre Gonçalo. Poderia até ser mal compreendido, já que Gonçalo escolhera a sua residência para aportar depois do golpe.

Dirigiu-se para o móvel da sala e resolveu ligar o rádio. Na primeira estação, notícias de crises e crimes. Diniz avançou o dial, e uma música invadiu o ambiente: “Tristeza / Por favor vai embora / A minha alma que chora / Está vendo o meu fim…”.

Um choro alto. Era Gonçalo. Em meio às lágrimas, a voz cavernosa e sentida:

— Ando tão triste, Diniz. Ela, sabe?… É o meu fim.

Diniz se aproximou, puxou uma cadeira para Gonçalo, e sentaram-se à mesa. Enquanto isso, uma nova canção: “E por falar em saudade / Onde anda você / Onde andam os seus olhos / Que a gente não vê / Onde anda esse corpo / Que me deixou morto / De tanto prazer…”.

— Seu corpo, Diniz. Ela, sabe?…, me deixou morto.

Quase não se ouvia a voz de Gonçalo, de tão embargada pelo sofrer. Diniz resolveu ofertar-lhe solidariedade:

— Força, amigo Gonçalo! A vida… sabe… em cada vão momento…

O locutor quebrou a sequência musical, anunciando um reclame. Com pouco: “Lá vem o Pato / Pata aqui, pata acolá / Lá vem o Pato / Para ver o que é que há…”.

Uma espécie de susto e inquietude intrometeu-se entre os dois. Sem perda de tempo, Diniz levantou-se e foi calar o velho rádio ABC.

 

***

 

— E como tudo se deu, amigo?

Gonçalo apertava os dedos, mexia na ponta deles como se identificasse vários cantos de unha, ingratos e renitentes.

— Ela sempre gostou de Vinicius. No namoro, expressou a sua paixão com uma letra do Poetinha.

— Sei…

— E, quando a pedi em casamento, amigo Diniz, e disse a ela que moraríamos num barraco? Ela sorriu para mim e, em seguida, cantou: “Era uma casa / Muito engraçada / Não tinha teto / Não tinha nada / Ninguém podia entrar nela, não / Porque na casa não tinha chão…”.

— Não me diga, Gonçalo!?…

Gonçalo assoou o nariz adunco. Com a cabeleira revolta, deu uns passos à toa pela saleta, voltando a sentar-se, antes de continuar:

— E, quando eu tinha que viajar, ela, com carinha de choro, me consolava: “Tomara / Que você volte depressa / Que você não se despeça / Nunca mais do meu carinho / E chore, se arrependa / E pense muito / Que é melhor se sofrer junto / Que viver feliz sozinho…”.

— Sei…

— Certa noite, voltei para casa antes do previsto e dei pelos olhos dela com um brilho diferente. Sem falar que ela não me olhava direto nos olhos. Beijou-me de um jeito ralo, sem o calor de costume. Ameacei, praguejei e, desesperado, lhe disse que gostaria de dar o fora. Ela, sem perder o ritmo, respondeu-me, misteriosamente: “O homem que diz ‘dou’ não dá / Porque quem dá mesmo não diz / O homem que diz ‘vou’ não vai / Porque quando foi já não quis / O homem que diz ‘sou’ não é / Porque quem é mesmo é não sou / O homem que diz ‘estou’ não ‘está’ / Porque ninguém está quando quer…”.

— Não me diga, Gonçalo!?…

Gonçalo se levantou. Com as mãos crispadas, os olhos em brasa. O choro lhe sumira da face, deixando-a com as cinzas de uma dor pungente. Então, deu algumas passadas largas e, voltando-se, tomado de fúria, em direção ao amigo Diniz, completou:

— Como eu acabo de descobrir o nome do traidor que me levou Rosabela, com mandinga de amor, juro: “E assim quando mais tarde me procure / Quem sabe a morte, angústia de quem vive / Quem sabe a solidão, fim de quem ama…”, eu possa sossegar, cantando para ele: “Por cima uma laje / Embaixo a escuridão / É fogo, irmão! É fogo, irmão!”.

— …

— Fale, homem! Este silêncio lhe faz mal.

— Não… Gonçalo!

 

Clauder Arcanjo

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