Mulheres fantásticas (IV): A Mulher Ventania – Clauder Arcanjo

Novidade, amigo, somente uma. Escrevo esta carta — sei que, hoje em dia, quase não se escrevem mais missivas —, porque algo me aflige. Como tentei lhe ligar, mas em sua casa ninguém atendia, resolvi colocar tudo no papel, antes que tamanha aflição (ou seria indecisão?) me leve à loucura. Sim, a coisa é séria, muito séria.

Pois bem, você deve estar viajando, eu sei. Depois de aposentado e viúvo, você quase não para mais em casa. Mas, amigo, preciso de sua atenção e, se possível, de um bom conselho. Por aqui, bem sabe você, o povo não é de muito aconselhamento. Vive-se no ramerrão de cada um por si, e Deus por todos.

Pois bem. Quando me mudei para Livramento dos Prazeres, movia-me a busca de sossego. Solteirão convicto e com uma idade em que os nervos já me faltam, resolvi morar numa província pacata, onde a pressa não estivesse a me espicaçar o juízo, nem muito menos a me roubar o restinho de saúde.

Aqui cheguei, você se lembra, há cinco anos; a escolha de Livramento foi devido à proximidade da serra, do sertão e do mar — A Terra dos Três Climas, como li numa placa grande à beira da estrada.

Gostei tanto daqui, nem preciso lhe repetir, que resolvi adquirir minha casa própria no alto da serra. Grande, espaçosa, ventilada. Nela, couberam todos os meus livros e as minhas coleções de gibi, mania que trago desde pequeno.

E o que me aflige?, você me pergunta.

Pois muito bem, vou direto ao assunto. Há dois anos, conheci uma senhora de meia idade. Nem tão velha que não me atraísse, nem tão nova que me preocupasse. Filha de uma família tradicional da cidade vizinha, aqui viera para dirigir o Hospital de Caridade. É enfermeira, e ficara viúva há pouco tempo. Soube logo que não tivera filhos, e que o esposo morrera tragicamente.

Encontramo-nos no baile de formatura do ginásio; ela, com um vestido branco e de rendas bordadas, encontrava-se numa mesa com a diretora do patronato. A diretora nos apresentou, sabendo da paixão de ambos pelos livros.

Com pouco, Machado de Assis, Lima Barreto, José de Alencar, Balzac, Shakespeare, Cervantes… sentaram-se à mesa conosco, e esquecemos do tempo. Quando menos percebi, a festa já ia alta, e uma valsa invadiu o salão. “Vocês poderiam dançar, meus caros!”, foi a sugestão da diretora do patronato. Venci a timidez, e fomos para o salão.

Na semana seguinte, passei no hospital e a presentei com uma edição nova de Dom Casmurro. Encontrava-se num atendimento de urgência, porém, tão logo leu a dedicatória, ela me ligou. “Você é um poeta, meu caro!”, foram as suas palavras.

Os livros nos fizeram amigos, a proximidade trouxe a confiança, a solidão deu um empurrãozinho final, e, quando dei por tudo, não passava um dia sem ir ter com ela.

***

Fiz uma pausa, porque agora tenho que entrar no ponto de aflição, ponto este que me levou a recorrer aos seus préstimos. Explico.

Semana passada, recebi uma carta anônima. Curta e direta. “Cuidado com a Mulher Ventania. Ela já levou para a terra dos pés juntos um desavisado.”

De início, amigo, quis mostrar a ela o tal bilhete anônimo, pensando tratar-se de uma brincadeira. Pensei melhor, e não o fiz.

Aquelas poucas palavras me tiraram a paz. Por onde eu andava, elas voltavam, com frequência, ao meu pensamento: “Cuidado com a Mulher Ventania. Ela já levou para a terra dos pés juntos um desavisado.”.

***

Sou discreto, sempre gosto de manter minha vida num quê de anonimato, o amigo conhece a minha história. Pois bem, antes de ontem, tomei um transporte e resolvi visitar Madalena, a cidade de onde ela viera.

Lá cheguei ao final da manhã, e logo cuidei de colher informações acerca do passado da minha pretendente. A mesa de um bar, nas cidades interioranas, fornece a ficha pessoal de todos; aprendi isso com os anos em Livramento dos Prazeres.

Sentei-me no balcão de uma bodega, puxei conversa acerca da previsão do clima, misturei um comentário de política com outro sobre futebol; e, quando a conversa corria livre no balcão, fui sondando, com a máxima discrição, acerca das famílias de Madalena.

O bodegueiro, seu Messias, servia-me uma dose de conhaque, lambia o seu charuto e vomitava-me segredos. Quando perguntei acerca da viuvez da enfermeira Delares (é este o nome dela), ele aproximou-se ainda mais, soprando-me, baixinho:

— O coitado do esposo… em plena lua de mel… foi…

O velho Messias cortou sua fala, amigo, ao perceber a entrada de um cachaceiro. Serviu-lhe uma dose dupla de pinga, nem cobrando por ela, como se tivesse pressa em se livrar daquele cliente inoportuno.

— Sim, amigo, o esposo, em plena lua de mel, foi…? — inquiri-o.

Ele, com as mãos trêmulas e os olhos esbugalhados, pigarreou, antes de arrematar, não sem antes confirmar que não seria ouvido por mais ninguém:

— … foi encontrado, levado por uma forte ventania, na cumeeira da casa do vizinho. Coitado, a ventania saiu de dentro de casa, jogando-lhe para o alto. Não resistiu à queda, morrendo no dia seguinte.

Não satisfeito com tudo, ainda avancei:

— Um amigo médico sabe… a conheceu. É solteirão, rapaz velho, a conheceu em Livramento dos Prazeres, onde ela dirige o Hospital de Caridade, e gostou do jeito dela. O que você me diz, seu Messias?

O velho bodegueiro, caro amigo, tomou um gole grande da serrana, garrafa que ainda se encontrava sobre o balcão, coçou o alto da cabeçorra como se num misto de aflição e impaciência, e confidenciou-me, em tom de segredo:

— … se junto com o amor por ela, o cabra tiver adquirido um bom par de asas.

***

Voltei para casa, e aqui estou a lhe escrever.

Amigo, preciso de sua atenção e, se possível, de mais um dos seus bons conselhos.

Aguardo a sua resposta.

Deste amigo,

Ícaro Arcanjo.

Clauder Arcanjo

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