Miriam Carrilho: singularidade e catarse

Márcio de Lima Dantas - Professor de Literatura Portuguesa da UFRN

 

1.
Miriam Carrilho nasceu em Natal (1947), cursou Administração na UFRN e Jornalismo na UNICAP. Seu gosto pelo desenho remonta à infância, embora não tenha feito nenhum curso, a arte sempre a fascinou. Estudou em colégio de freiras durante cinco anos, como interna. Publicou dois livros Folhas esparsas (poesia) e O Pacote (contos, crônicas, poesias e desenhos). No antigo ginásial teve uma excelente professora de desenho, Soeur Regina.

Nas horas vagas, toca sanfona de 80 baixos. O seu despertar anunciou-se por meio de uma mulher que se chamava Carmen Silva, da revista Cláudia. Essa jornalista deteve um papel primordial na vida da artista, visto que a mesma defendia a não submissão da mulher ao status quo, apelando para que as mesmas tomassem as rédeas dos seus destinos, não se subordinando à vontade alheia e aos papeis que deveriam representar na cena da sociedade. E assim foi, voltou a estudar e a trabalhar, dando uma guinada no não ser uma mulher, ousando fazer uma outra coisa do que tinham feito dela, como propugnava o filósofo Jean Paul Sartre.

 

 

Miriam Carrilho delineia a maioria dos seus trabalhos com caneta esferográfica, tendo se destacado como hábil no manuseio de elaborar requintados desenhos que não fazem uso da perspectiva, ou seja, detém apenas comprimento e largura. Mesmo assim, não podemos considerar sua obra como naif ou primitiva, na medida em que detém uma originalidade bem singular, não se aproximando dos chamados ingênuos, tampouco se vincula às nossas tradições da arte Acadêmica.

Os temas presentes são sempre os mesmos: galinhas, peixes, flores, arranjos de folhas, borboletas, cajus pássaros. As canetas esferográficas foram uma espécie de epifania libertadora, até então não ousara trabalhar com esse meio, tendo isso sucedido a partir dos anos 90. Para efeito de melhor compreender a obra, em empreitei organizar seus trabalhos tendo em vista a técnica usada para elaborar suas criações. O uso da caneta esferográfica, até onde sei, não é muito comum, quase sempre está ligado ao desenho de retratos de rostos, muito mais, ao que parece, desejando demonstrar a capacidade e o virtuosismo de quem desenha, dominando o retratar realista.

 

Os seus desenhos detém uma elaboração que sugere uma técnica mais complexa, exigindo um domínio sobre um meio não muito comum entre artistas na elaboração de seus trabalhos, como dissemos. As canetas esferográficas podem ser de qualquer marca: Bic, Compactor, Pentel, Pilot, Faber Castell. Eis como organizei em três arranjos básicos, embora a pintora, por vezes, mescle a primeirase a última técnica. a) caneta esferográfica, b) acrílica sobre tela, c) lápis de cor aquarelável.

 

2.
Não parece ser involuntária a repetição dos mesmos temas: galinhas, peixes, cajus, flores, arranjos com folhas. Queremos dizer que o repertório temático é reduzido, comprazendo-se em demonstrar o categórico domínio de uma técnica não muito comum na comarca da arte. Compreendo que é um resgate da memória de uma espécie de Locus Amenus para sempre perdido, visto que habita no domínio do passado, no qual não havia a necessidade do inexorável confronto com o que chamamos de Realidade, revelando certas limitações humanas para lidar com a autonomia das coisas do cotidiano.

 

 

A obra de Miriam Carrilho avulta-se de uma maneira que podemos evocar, com o objetivo de cotejar um gênero que pertence ao repertório de música, mas resguarda uma curiosa semelhança, propomos isso para efeito didático, com o intuito de elucidar seus desenhos, tanto na forma quanto nos sentidos que resguardam; falamos da “Fuga”, bem conhecida por ter sido manuseada por J. S. Bach. Isso mesmo, como se assemelham no seu aspecto estrutural! A partir de determinado segmento musical, de um topos, digamos assim invariante, o musicista elabora todas uma série de variações, fazendo uso dos diversos instrumentos musicais que integram a orquestra.

Havera de refletir acerca dos motivos pelos quais sucedeu o impulso que a conduziu a essa espécie de obsessão de uma mitologia que, ao que parece, resgata um tempo perdido. A indiferença do semblante no olhar dos bichos retratados nos conduz a divagar que há uma certa aceitação, uma resiliência, perante a força indomesticável do Real. Por outro lado, talvez possamos afirmar que sua obra é como se fosse uma espécie de luto ou tempo do nojo, no qual se aceita o vivido, com as vicissitudes a que todos, – faz parte da condição humana -, estão submetidos no viver a sucessão de dias a que somos obrigados ao contato e a cumprir, dando respostas consoante nosso ethos.

 

Ao que parece, a pintora tomou o partido de transmutar suas experiências em sabedoria, compreendendo que essa é a mais sensata maneira de responder ao leque de perguntas e farpas emanadas da vida de todos os dias. Não apenas pondo em prática elementos do comportamento que lançam suas fronteiras para os canaviais de onde manam o açúcar, e nunca para brancas salinas ardentes de um sol que queima o que lhe passa à frente. Há em sua obra, num contato mais íntimo, a possibilidade de sentir a categoria aristotélica de catarse: aquele que contempla uma obra de arte com interesse e curiosidade, purga suas paixões, ao se identificar com o objeto de arte.

Lembrei agora da obra do poeta francês Francis Ponge (1899 –1988), Le parti pris de choses. Aqui o poeta fala dos objetos e coisas que o entornam, de uma deliberada forma em prosa, deixando por conta do leitor a análise e interpretação de um texto elaborado em prosa, ou poemas em prosa, como queiram. Concerne ao leitor ler e sentir, elaborando uma provável metáfora do texto, um fortuito sentido que vai ao encontro da sua experiência com o mundo.

 

 

3.
Continuando. A obra de Miriam Carrilho sugere uma pragmática que detém a simplicidade e a economia de meios como alternativa perante não só a arte, mas à vida e seus vetores que apontam em todas as direções. Como estava dizendo, tanto nos meios para alcançar seus objetivos em engendrar suas criações com o uso da banalidade de uma caneta esferográfica, criando uma dicção bastante própria, visto deter uma singularidade, quanto no conteúdo dos temas presentes nos seus desenhos em papel cartão.

E eis que tudo isso é mimetizado em obras de arte de lídima qualidade estética. A transfiguração do existido vem a se delinear em desenhos e telas que pulsam uma empatia aos que tiveram acesso às suas criações. Passa ao largo do Surrealismo, com seus enigmas e símbolos retirados do Inconsciente.

Sim, é muito mais uma dádiva de se reconhecer como humano que sente uma necessidade de ser autêntico, de não atender aos apelos ululantes de uma sociedade que clama o uso de máscaras no dia a dia, ora para se proteger, ora para se camuflar em atitude de defesa, antecipando-se ao que pode lhe importuna.

 

Miriam Carrilho é proprietária de uma livraria e papelaria. O papel cartão usado como suporte para seu trabalho chega por meio das embalagens de cadernos, para evitar serem danificados, na verdade a artista aproveita o que seria naturalmente descartado, jogado fora. Percebemos aqui uma atitude ecológica, ao reciclar o que viria a ser lixo. O papel cartão, com suas duas faces, uma mais rugosa e mais escura e outra branca e menos porosa, mais lisa. Faz uso da primeira como suporte do seu trabalho.

Aqui segue uma vera lição para uma sociedade estruturada numa forma de pensar cujos pilares se encontram sobre um pensamento cujo alicerce primeiro é o descartável como regra geral, – ideologia pura, na medida em que naturaliza o que é construção humana, advinda das classes dominantes no seu intuito de fomentar o consumismo, de imperar seus caprichos e formas de viver deixando de fora o diferente. Esse pensar costura lugares que passam pela política, relações de amor ou de amizades. Evoco o já lugar- comum: Vale o parecer. Ser? Tanto faz como tanto fez.

 

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