MINHA TIA

Nilo Emerenciano arquiteto e escritor

Tia Dora morou conosco durante longos nove anos. O marido havia saltado fora depois de brigas incontáveis, brigas de verdade em que os pratos e panelas voavam através da cozinha e se espatifavam nas paredes ou na cara de um ou outro. Nenhum deles procurou direitos ou alguma delegacia qualquer para queixas. Resolviam na tapa (ou nas paneladas) suas desavenças.

Sobrou pra nós. Mas com ela lá em casa aprendi um vocabulário novo: cobra caninana, cachorro da moléstia, infeliz das costas ocas, gota serena…

A tia parecia um personagem do realismo fantástico. Via espíritos o tempo inteiro, apesar de ser “católica até torar”, como ela mesma afirmava. Isso não impedia que jogasse no bicho seguindo os palpites que recebia nos sonhos. Só que os seus sonhos precisavam de especial interpretação. – Viram? Sonhei com o caminhão de seu Manoel e acertei camelo na cabeça! – E que tem camelo a ver com caminhão, tia? Eu perguntava intrigado. – Mas não tá na cara? Camelo é o caminhão do deserto, oras!

Os espíritos davam noticia de lá e de cá, acordavam-na na horinha da missa da manhã, avisavam sobre a chegada iminente de alguém. Só nunca conseguiram arranjar um novo marido para ela. Em compensação foram de grande ajuda no jogo de cartas que ela começou a praticar com as moças casadouras e as senhoras esperançosas do bairro. Em troca, recebia presentes tipo perfumes, cortes de tecido, e às vezes dinheiro que ela procurava esconder de minha mãe que fingia não ver tudo aquilo, tolerante. Eu, por perto, observava curioso aquela atividade. Um dia, escondi o valete de paus que representava o “homem moreno”, sempre presente naquelas consultas. E aguardei. A tia cortou o baralho em cruz e começou a atender uma jovem ansiosa por saber de prováveis namorados. Em vão. A consulente viu passar todo tipo de rapazes: militares, louros, doutores, tudo, menos o moreno. E não se conformou: – E o moreno? Eu gosto é do moreno! Tive pena do aperreio da tia que espalhava as cartas na mesa e sugeri: – Conte o baralho, tia. São 52 cartas, 13 cartas em cada naipe. Depois veja no aparador.  E saí de perto antes da explosão.

Uma vez a tia bolou uma forma mais eficiente de acertar o bicho e convenceu uma nossa vizinha a acompanha-la nessa empreitada. Postaram-se, as duas, em uma esquina próxima de casa, a rezar o terço e recitar alguns esoterismos. A ideia era que à meia-noite, de alguma forma, o bicho seria revelado. O bairro era pacato e naquela hora não havia movimento algum. Eram outros tempos. O que a tia não contava era que Bizuza, um vizinho boêmio, notório mulherengo, fosse aparecer de volta de suas andanças noturnas e, vendo aquelas mulheres na esquina, tentasse arrastar a asa e engrenar um daqueles papos chatos de biriteiro. A meia noite veio e passou, a tia voltou fumaçando: – Melequento da moringa! Cu de cana! Bixiga taboca! Raparigueiro! Botou tudo a perder! No dia seguinte a tia se lamentava, pois havia dado cachorro. – Como deixei passar essa? Tava na cara! Quer maior cachorro do que aquele? E escandia os erres, revoltada: – Cachorrrrro!

Um dia o padre não aguentou mais e proibiu a tia de exercer esses sortilégios sob pena de lhe negar a confissão. – A senhora se decide: ou a comunhão ou essa coisa de catimbó! A tia voltou da igreja acabrunhada. – Esse padre de meia tigela me chamou de catimbozeira. Catimbozeira é a mãe dele, se é que teve uma, oras. Ele pensa que não sei dos podres? Passou uns dias muito triste, pelos cantos, até que a ficha caiu: – Gota serena, porque não pensei antes? É só não contar que ele não vai adivinhar nunquinha…

E voltou aos seus mistérios, às suas vozes, às suas cartas e sonhos.

NATAL/RN

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