“Marranismo” e o retorno ao judaísmo no RN

Em palestra que proferi na UFRN, no I Encontro de Língua e Cultura Hebraica do RN, no início deste mês, tive o prazer de falar, pela primeira vez, de um tema que venho me debruçando desde 2006, e que, um dia, espero poder escrever minha tese de professor Titular da UFERSA. Falar de “marranos” e conversão ao judaísmo sempre me interessou, tanto por indícios familiares (por parte de mãe, família Carvalho do Sertão do Trairi), como por curiosidade intelectual, além de um fascínio pela história de um povo tão tenaz.

Desde a sua última Diáspora em 70 d.C., quando os romanos destruíram Jerusalém e seu Templo, os judeus tornaram-se um povo sem lar nacional. Expulsos da Palestina, dispersos, sem um líder, sem um Estado ou qualquer aparato normal de apoio proporcionado por seu próprio governo, foram os judeus forçados a encontrar meios alternativos com que preservassem a sua identidade especial (BRIGHT, 2003).

Envoltos em sua religiosidade, tornaram a Torá (o Pentateuco da Bíblia cristã) a base de sua identidade social. A Torá é apenas em parte um código ético. É também, em essência, uma série de mandamentos divinos e absolutistas que cobre uma grande variedade de atividades, muitas das quais nada têm que ver com as relações entre os homens. Todo o resto dela, da circuncisão, à dieta, ao contato e ao asseio, longe de serem comentários eram injunções de grande antiguidade que constituíam as grandes barreiras entre os judeus devotos e o resto da humanidade.

Assim,

a hostilidade específica para com os judeus, que começou a emergir na segunda metade do primeiro milênio a.C., era uma função do monoteísmo judeu e suas consequências sociais. Os judeus não podiam reconhecer a existência de outras divindades, ou mostrar respeito por elas, e não o fizeram. Mesmo em 500 a.C., a fé judaica era muito velha e retinha práticas e tabus antigos que haviam sido abandonados em outras partes, mas que os judeus, sob o impulso de sua liderança cada vez mais rigorosa, observaram fielmente. A circuncisão os isolava e era encarada pelo mundo greco-romano como coisa bárbara e de mau gosto. Mas, pelo menos, a circuncisão não impedia relacionamento social. As leis judaicas antigas de dieta e de asseio o impediam. Talvez isso, mais do que qualquer outro fator, tenha centralizado hostilidade nas comunidades judaicas. “Estranheza”, numa palavra, estava na origem do antisemitismo na antiguidade: os judeus não eram apenas imigrantes, mas se mantinham à parte (JOHNSON, 1995, p. 142-143).

A partir de 70 d.C., e ainda mais depois de 135 d.C. (ano da última guerra judaica e da proibição romana da ida de judeus à Palestina), o judaísmo deixou de ser uma religião nacional em qualquer sentido físico e visível, e os judeus foram expatriados. Apesar disso, tanto a judiaria quanto o judaísmo tornaram-se co-extensivos com o estudo e a observância da Torá.

Os judeus puderam sobreviver porque o período de intensa introspecção habilitou seus líderes intelectuais a ampliar a Torá para um sistema de teologia moral e lei comunitária, de coerência lógica e de força social. Tendo perdido o reino de Israel, os judeus transformaram a Torá numa fortaleza da mente e do espírito, em que podiam viver com segurança e mesmo contentamento (JOHNSON, 1995, p. 158).

Após a longa noite medieval, os judeus voltaram novamente a migrar. A grande diáspora sefardita, a partir da Espanha em 1492, de Portugal em 1497, pôs os judeus em movimento em toda parte, pois a chegada de refugiados em grande número levava, via de regra, a outras expulsões (SARAIVA, 1969).

Buscando na América um porto seguro para morar, os judeus migraram em massa. Na maioria das vezes não abertamente, mas como marranos. Estes eram judeus obrigados a se converterem ao catolicismo para não serem expulsos da Espanha e de Portugal, os marranos eram extremamente mal vistos. Quando se tornavam conversos, ou, como o povo os chamava, marranos, um termo injurioso, derivado da palavra espanhola para ‘porcos’, passaram a ser um perigo oculto. A gente citadina espanhola sabia que muitos, talvez a maior parte dos conversos, eram relutantes. Eles deixavam formalmente de ser judeus por medo, ou para conseguir vantagem. Como judeus, sofriam de graves impedimentos legais. Como conversos, possuíam, em teoria, os mesmos direitos econômicos dos outros cristãos. Um marrano era assim muito mais impopular do que um judeu praticante porque ele era um intruso em comércio e em ofício, uma ameaça econômica; e, como era provavelmente um judeu em segredo, era um hipócrita e também um elemento subversivo oculto (JOHNSON, 1995, p. 231).

Perseguidos

os grupos judaicos tenderam à assimilação, apenas não tendo o fenômeno maior intensidade porque uma força contrária, externa, reengendrava o judeu. Uma vez forçado a permanecer judeu, reelaborava valores que podiam funcionar como barreiras para as eventuais pressões integradoras que viessem a surgir em outro momento histórico (PINSKY, 1978, p. 141).

Na América poderiam, assim pensavam, viver incólumes, livres para exercer no segredo sua fé desgarrada e proibida. Dessa maneira, desde o descobrimento do Brasil – evento este do qual participaram, tendo inclusive ajudado nos seus preparativos – até a época presente, os judeus, quase sem intermitência, aberta ou disfarçadamente, estiveram integrados nos processos de formação das nacionalidades.

No final do século XIX e início do século XX, os judeus se instalaram maciçamente no Brasil. Desta vez não mais como “marranos”, mas enquanto membros ativos de uma comunidade religiosa que procurava se integrar no seio da sociedade mais ampla (que se gestionava) – a brasileira.

As comunidades judaicas desenvolveram-se em torno de suas sinagogas e, ao mesmo tempo, procuraram manter a sua identidade de judeus e inserir-se no meio sócio-cultural local. Em Natal, os registros de uma comunidade judia sólida são observados desde o início do século XX, com a presença de um Centro Israelita e de um terreno reservado para o seu sepultamento no Cemitério do Alecrim.

A comunidade judaica de Natal, hoje, é um grupo social formado essencialmente de judeus retornados, bal-teshuvah (do hebraico, “aquele que retorna”). Indivíduos, cristãos católicos em sua maioria, que possuem ascendência judaica (em até dez gerações anteriores) e que se converteram – retornaram – ao judaísmo. Sendo o judaísmo uma religião nacional e extremamente fechada dentro de si mesma, ou seja, que não tem nenhum interesse em praticar proselitismo (ao menos o judaísmo oficial), o fato, além de curioso por si mesmo, é merecedor de análise mais acurada.

A necessidade de se estudar uma comunidade religiosa em si pode parecer de pouca ou nenhuma relevância para as ciências sociais. Porém, é preciso levar-se em consideração o fato, sui generis, de termos como objeto uma comunidade formada quase que inteiramente por indivíduos convertidos ao judaísmo (bal-teshuvah), uma religião que, como falamos anteriormente, é extremamente avessa ao proselitismo religioso. Compreender as razões dessa conversão são importantes no campo mais específico da sociologia e antropologia da religião.

Assim, a comunidade judaica de Natal se apresenta como um grupo que pode ajudar-nos a descortinar – num mundo onde o judaísmo é visto como símbolo de opressão (quando associado à Israel) ou sofre preconceitos diversos, positivos e negativos – as motivações e interesses que se escondem nessas conversões.

Também devemos ressaltar a necessidade de se tentar compreender a maneira como uma cultura fechada como o judaísmo tende a se integrar – ou não – com uma cultura caracterizada pela sua perspectiva assimilacionista como é a cultura brasileira. Deste modo, um estudo aprofundado nos remeteria também à análise da dialética comunidade/sociedade, tal qual esta é trabalhada e pensada pela sociologia clássica, construindo mais uma contribuição a esse campo de estudo.

Um desafio que voltei a topar enfrentar.