Jardim perdido – Joelma Benigna

JARDIM PERDIDO

Jardim em flor, jardim de impossessão,
Transbordante de imagens mas informe,
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.

A verdura das arvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.

A luz trazia em si a agitação
De paraísos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidades e suspensão.

Mas cada gesto em ti se quebrou, denso
Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazias em ti sempre suspenso
Outro jardim possivel e perdido.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN 
In Poesia, 1944 

A invenção dos jardins enquanto espaços de natureza ordenada parece ter sido paralela ao avanço do racionalismo como forma de olhar o mundo. E desde que criados como locais de lazer foram progressivamente tomando parte na vida quotidiana. À medida que o tempo para o ócio se estendeu as mais largas camadas de população, sucederam-se os jardins públicos como espaços integrantes do universo urbano. Quando podemos passear num jardim, sentimo-nos bem: é uma espécie de poesia sem palavras, esse bem estar. Associamos aos jardins uma ideia de harmonia, de beleza, de natureza ordenada pelo homem com intuito de provocar prazer. Sentir poeticamente os jardins é privilegio de poucos e dar-lhe forma escrita é ainda mais raro. Folheio livros e encontro, diria que sem surpresa dada a personalidade da escritora, a presença da emoção induzida pelo jardim entre as primeiras obras de Sophia de Mello Breyner Andresen (1914-2004).

Para a poetisa Sophia de Mello: A poesia é uma “perseguição” do real, ou seja, o real é o seu ponto de partida; a poesia constrói, pelo rigor e verdade a transmissão de uma moral – Segundo Sophia, o poema é sempre uma construção de rigor e de verdade, e todo aquele que é sensível à beleza de um poema não pode deixar de ser sensível à injustiça e à ordem falsa do mundo. Mesmo aqueles poemas que apenas falam da luz ou do ar são sempre um meio de denunciar a injustiça e o sofrimento do mundo.A poesia deve ser um meio para atingir a liberdade e a dignidade do ser – recusa a ideia da «arte pela arte», sublinhando que mesmo o artista que escolhe o isolamento, pela sua produção artística “influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros”, porque “pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de verdade e de consciência, ele irá contribuir para a formação de uma consciência comum”.

A TEMÁTICA

 Os Elementos Primordiais: A sua poesia mantém permanentemente uma relação especial com a natureza, nomeadamente com os quatro elementos primordiais. A água (mar, espuma, praia), o ar (vento, brisa, sopro), o fogo (sol e luz) e a terra (natureza, fauna e flora) constituem a “perfeição do universo”, daí que Sophia, como poeta, um medianeiro do Absoluto, deva procurar a compreensão da agitação cósmica, e apreender uma realidade pautada pela pureza, perfeição e harmonia.

Elemento poético: o mar, à noite, a floresta.

A natureza é uma das principais fontes de inspiração, conotada de significados diversos: tanto funciona como elemento poético (o mar, a noite, a floresta) como contém a verdade antiga das origens e do futuro; tanto se liga à ideia de beleza, pela sua perfeição e variedade de cores, como aparece associada ao mistério (sereias, nereides, ninfas, ilhas, pássaros estranhos e cores nunca vistas). Contém a verdade antiga das origens e do futuro.

Por outro lado, e quase paradoxalmente, a noite é “o espaço imenso que lhe consente visões em que pode satisfazer a sua sede de libertação pelo sonho, de partida para as viagens mais imprevistas, pelo imaginário e longínquo, da captação dos segredos adormecidos na memória”.

A NATUREZA TERRESTRE

Os elementos terrestres aparecem com muita frequência relacionada com a riquíssima memória do passado: infância e adolescência – jardim e casa. O mundo passado reconstitui-se através da memória: tempo recuperado. Jardim Perdido = beleza; pureza dos dias vividos; passado de sonho e fantasia.

CARACTERISTÍCAS ESTILÍSTICAS

Captação do real por meio de sensações que, por vezes confundindo-se, originam sinestesias. A poetisa transfigura tudo através da imaginação. As metáforas e as imagens constituem o fascínio do seu mundo artístico irreal, daí a plurissignificação e a ambiguidade tão própria dos seus poemas. A rima serve para criar beleza fónica, mas também para realçar certas palavras chave do poema. A pontuação é pouco utilizada de forma a não tolher a imaginação e o sonho.  Discurso figurado com recurso a símbolos e alegorias. Uso de certas palavras dotadas de grande simbolismo e magia: praia, jardim, justiça, mar, casa, luar, sol, água, vida, morte, areia, terra, estrelas, beijo. Liberdade de ritmo e métrica.

Declaro-me, cada vez mais, rendida! A poesia de Sophia, além de maravilhosa, ela nos leva a uma viagem. Amei passear por estes “jardins” onde a magia das palavras me transporta a outros mundos, nesse poema introspectivo, carregado de amor e solidão transbordante de imagens, onde o vermelho das rosas transborda, alucinando cada ser, numa agitação de paraíso, deuses e infernos de possibilidades e suspensão. Pois trás em ti sempre suspenso outro jardim possível e perdido. Há amores que não se deixam conquistar por inteiro, não se entrega de verdade os devaneios e loucuras que o amor pode transportá-lo se nunca se doam por inteiro aos amores da vida.

Joelma Benigna – Graduanda em Letras pela UFRN.