Inspeção revela que pelo menos mil brasileiros vivem internados em manicômios
Uma inspeção realizada em 40 hospitais psiquiátricos de 17 estados do país identificou uma série de violações de direitos dos pacientes.
Organizada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) em parceria com o Mecanismo Nacional e Prevenção e de Combate à Tortura (MNPCT), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a ação observou, por exemplo, que 82% das unidades mantêm pacientes como moradores, em internações de longa permanência.
Ao todo, foram encontradas 1.185 pessoas nessa condição. De acordo com os especialistas, a prática fere a Lei Federal nº 10.216/2001, fixa direitos de pessoas com transtornos mentais.
“Não se mora em hospital”
A situação também contrasta com a política de desinstitucionalização do Ministério da Saúde, que não recomenda os manicômios, garante a alta dos pacientes e prevê a sua reinclusão comunitária, com retorno à convivência familiar ou ida para residências terapêuticas.
“Não se mora em hospital. Hospital é uma estratégia do Sistema Único de Saúde [SUS] em que a pessoa, num momento muito particular da sua vida, acessa pra resolver pontualmente uma questão e, evidentemente, a vida dessas pessoas tem que ser na comunidade”, afirma o perito o Lúcio Costa, do MNPCT, ressaltando que a inspeção chegou a encontrar, em uma das instituições visitadas, um idoso que há 60 anos era mantido no local.
Violações
Além das internações de longa permanência, o relatório traz ainda um conjunto de outras violações, como a quantidade insuficiente ou mesmo a ausência de papel higiênico, observada em 35% das unidades.
Outro dado considerado alarmante pelas instituições organizadoras do relatório é o fato de 45% dos hospitais não conterem insumos básicos. Em 25% dos locais visitados, a responsabilidade por esses produtos estava a cargo das famílias dos pacientes ou de outras pessoas.
Questões relativas à infraestrutura também se somam ao contingente de problemas.
Foi observado pelas equipes, por exemplo, que 30% dos estabelecimentos não têm alvará ou licença sanitária. Em 42% deles, os banheiros não apresentavam portas, enquanto 22% não tinham água quente disponível para banho.
Além disso, 27% das unidades não tinham cama para todas as pessoas atendidas e 62% apresentavam “alimentação insuficiente”, situação em que os especialistas verificam má qualidade da comida ou mesmo falta de alimento.
“O que nos impacta muito é saber, por exemplo, que o orçamento da saúde pública no Brasil cresce 5% e o financiamento de hospitais psiquiátricos nessas condições cresce 26%. A gente entende que esse é um desvio de recursos”, critica o presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Rogério Giannini.
Elementos que suscitam questões mais subjetivas também compõem o cenário de violações, como a proibição de vestimentas individualizadas, verificada em 65% dos locais.
“O uso de uniformes é um instrumento de anulação da subjetividade das pessoas. A gente escolhe o jeito como se veste porque isso demonstra a nossa personalidade ou face dela, e essas pessoas, em 65% dos hospitais inspecionados, são submetidas a usar uniformes. Isso é mais uma característica do modus operandi de anulação da subjetividade desses pacientes”, aponta Lúcio Costa.
Abrangência
As 40 unidades analisadas estão nas cinco regiões do país e correspondem a 33% dos 121 hospitais psiquiátricos habilitados pelo Ministério da Saúde.
Os leitos visitados pelos especialistas também correspondem a 33% do total de leito do SUS em hospitais do tipo. Realizadas em dezembro de 2018, as visitas aos locais deram origem ao documento “Hospitais psiquiátricos no Brasil: relatório de inspeção nacional”, lançado nesta segunda-feira (2), em Brasília (DF).
Atravessada por múltiplos olhares, a ação de inspeção envolveu um total de 500 pessoas, entre especialistas, autoridades do sistema de Justiça e outros profissionais, como assistentes sociais, psicólogos, médicos e enfermeiros.
Entre os critérios utilizados para selecionar as unidades a serem visitadas pelas equipes, os especialistas consideraram questões como taxa de ocupação acima de 100% e notícias de violações de direito.
Também foram levados em conta casos em que havia pedido anterior de descredenciamento da unidade em relação ao SUS e de hospitais que já foram alvo de inquéritos civis, Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), entre outras situações.
“Dados mínimos”
O perito Lúcio Costa destaca a carência de informações sistematizadas sobre a realidade dessas instituições no país. Como há ainda outros 81 hospitais psiquiátricos que não foram inspecionados, ele sublinha que “os dados [listados no relatório] são mínimos”. “É disso sempre pra mais, nunca pra menos”.
Com base no universo pesquisado e em debates anteriores sobre o tema, o Conselho Federal de Psicologia e o Mecanismo Nacional e Prevenção e de Combate à Tortura defendem o fechamento das instituições analisadas no relatório.
“O Estado precisa se comprometer a pensar estratégias de cuidado fora dessas instituições. Pra isso, um dos diversos caminhos é o fechamento da porta de entrada dessas unidades, pra que as estratégias comecem a ser trabalhadas no sentido da reinserção social dessas pessoas, e não da continuidade da internação ou da privação de liberdade. Essa é a finalidade de qualquer tratamento de saúde mental”, argumenta Costa.
O pedido de fechamento será encaminhado aos órgãos competentes e compõe uma lista de encaminhamentos definida pelos signatários do relatório. O rol inclui ainda, por exemplo, pedidos de providências para a desinstitucionalização das pessoas internadas.
As entidades afirmam que as violações encontradas nos hospitais infringem diferentes legislações, como a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, a Lei da Reforma Psiquiátrica (10.215/2001), a Lei do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (12.847/2013) e ainda outras normativas nacionais e internacionais, como é o caso das Regras de Mandela, que trata dos direitos de pessoas em privação de liberdade.
Brasil de Fato