INSISTÊNCIA
Pequeno, largava os cadernos, tirava a farda do colégio e desembestava no rumo do quintal. Quase uma hora a tentar dominar o ofício de bem driblar no futebol. Como único zagueiro, o caule (beque estático) da tamarineira. Mesmo assim, de quando em vez, o choque frontal com a vetusta árvore:
– Falta, falta! – gritava a largos pulmões.
Nunca soubera conduzir a bola de cabeça alta, como elogiava o seu pai ao ver o camisa dez da seleção jogar. “Repare só, meu filho, na elegância dele. Nem sequer precisa olhar para a bola. Conduz a pelota com estilo, nunca maltrata a coitada. Um fidalgo do grande esporte bretão.”
Corria para o dicionário. Folheava-o à cata do significado de “fidalgo” e “bretão”. Dormia a sonhar inquietudes, numa partida longa em que o placar sempre lhe era adverso.
No outro dia, a cena se repetia. Como testemunha da sua insistência, o olhar caviloso do gato Malfalado.
– Chispa, chispa daqui, seu olho gordo!
Anos depois, convenceu-se: não nascera para os gramados.
***
Rapazote, enfiava-se nos cadernos; dia e noite, noite e dia. A queimar as velas e as pestanas nos tomos de história, geografia, línguas e… matemática.
Horas e horas a repetir nomes e passagens históricas, acidentes geográficos, conceitos, atributos, fórmulas e teoremas. Como único entrave (porteira fechada), a cruel matemática. Avançava nas outras disciplinas, no entanto, estabanado, trocava sinais, engolia números, esquecia conceitos, perdia-se nos desvãos da lógica e zerava na avaliação da ciência de Arquimedes.
Parecia uma terra ignota e inacessível para os seus neurônios. “A matemática é a mãe de todas as ciências, filho meu. Todos os nossos avanços advieram da matemática aplicada”.
O que para o seu genitor cheirava ao colo quente da maternidade; para ele, extenuado, a coisa resvalava para o tacão do padrasto. Pior, de um padrasto carrasco.
No ano seguinte, a labuta se repetia. Junto a ele, espiando a sua expiação, uma coruja de louça importada, posta na prateleira mais alta. Presente do seu tio Renê. “A companheira da inteligência, sobrinho!
Que ela o acompanhe!”
Teve fumos de lançar-lhe uma chinelada, porém, a tempo, conteve-se.
– Chispa, chispa daqui!
Anos e anos… deu um ponto final na equação: não fora concebido para os algebrismos.
***
Estabelecido no comércio, habilidoso no trato dos negócios, fez riqueza e, com pouco, decidiu casar-se. Jogou água de cheiro nos sovacos, penteou os cabelos com a melhor brilhantina, pôs a roupa domingueira e saiu em direção à casa da pretendente.
Na entrada, com fidalguia, jeito e arte, driblou Dona Juventina. Marcadora implacável de todos os interessados em sua única filha Rosa Maria. Dona Juventina derramou-se em mesuras, enchendo a cara larga de dentes e risos para o seu futuro genro.
Na sala, com números e aplicações, ele resolveu, integralmente, a questão com o Coronel Malaquias. Mediram-se, regrediram suas faltas e concluíram como era larga, quase infinita, a margem derivada de suas adições.
Na varanda, sob os auspícios de um luar insosso, Rosa Maria quis valorizar-se, impondo-lhe uma discreta recusa. Cansado de tanta insistência na vida, ele levantou-se, alardeando, de cabeça erguida:
– Ou casa ou chispo!
– Casa. Claro que ela casa! – intervieram, uníssonos e com insistência, Coronel Malaquias e Dona Juventina.
As núpcias ocorreram no mês seguinte, pois não nascera para postergações. Todos, na igreja, a comentar: “Reparem na elegância dele. Um verdadeiro bretão!”.