Homero Costa: Partidos, eleições e redes digitais

Homero Costa Homero Costa, cientista político e professor da UFRN

Dois artigos publicados recentemente destacam a relevância dos partidos políticos no Brasil. Trata-se de Partidos, movimentos, democracia: riscos e desafios do século XXI, de Marco Aurélio Nogueira, publicado no Journal of Democracy (Volume 8, n.2, 2019) e Burocráticos, partidos vivem à sombra do Estado e dificultam renovação de Jairo Nicolau, publicado no dia 24 de novembro de 2019 no jornal Folha de S.Paulo.

Ambos defendem que os partidos ainda são importantes no jogo político e parlamentar, mas que não tem mais o mesmo protagonismo como agentes de mobilização e educação política. Como diz Nogueira “Deixaram de atuar como fatores de hegemonia – de formação de consensos e da fixação de diretrizes ético-políticas” e uma das conseqüências é que “os eleitores se afastam das urnas, partidos perdem inscritos e militantes, decai a confiança nas instituições. A movimentação associativa parece ignorar a política institucionalizada e esta, por sua vez, tende a se oligarquizar, a aprofundar seus nexos com o sistema econômico-financeiro e a virar as costas para os cidadãos, que passam a se sentir sem representação”.

Outro aspecto diz respeito ao fato de que a constatação da derrocada dos partidos “passou a reforçar a ideia de que a democracia representativa ingressou em crise de igual proporção, com a ampliação da fuga dos eleitores, o aumento do desinteresse político da população e a desvalorização das eleições”.

De fato há muitos estudos que afirmam existir uma crise de da representação política, no qual os eleitos, em geral, não representam os interesses daqueles que o elegeram, mas dos financiadores de suas campanhas e que influenciam ou exercem o controle de seus mandatos.

Este aspecto é relevante e se associa à incapacidade dos partidos, dependentes dos recursos do Estado de articularem e representarem os distintos setores da sociedade, não exercendo as funções de integração, organização e mobilização, de ser o intermediário entre Estado e sociedade.

Nem representam nem tampouco, como consequência, criam mecanismos para estimular a participação dos filiados, mobilizados apenas em vésperas das eleições. Não existem canais institucionais que permitam uma participação efetiva dos representados e sim uma crescente incapacidade para funcionarem como agentes de representação. A participação se limita basicamente a votar periodicamente.

A descrença no regime democrático e suas instituições, em especial os partidos políticos, trouxeram e trazem graves conseqüências para a democracia, como o alheamento dos eleitores, que se expressa em altos índices de abstenções, votos nulos e em brancos, inclusive em países com voto obrigatório, como o Brasil.

O exemplo mais recente nesse sentido foram os dados relativos às eleições presidenciais de 2018: a abstenção eleitoral foi de 21,30%, os votos brancos 2,14%, e os nulos 7,43%. Isso corresponde a mais de 30% do total de eleitores aptos a votar. Segundo os dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foram 31,3 milhões de pessoas que se abstiveram, votaram em branco ou anularam o voto (o maior percentual desde a eleição presidencial de 1989).

Mas há um aspecto relevante nas duas mais recentes eleições presidenciais (2014 e 2018) que foi o uso das mídias digitais, muito mais decisiva do que os partidos políticos para a decisão do voto. Aproveitando o cenário de descontentamento com o funcionamento do sistema político e partidário, o desprezo pelos partidos foi usado de forma eficaz pela direita nas mídias digitais, que culminou no êxito eleitoral de Bolsonaro nas eleições de outubro de 2018.

Esse processo começou na eleição de 2014 com a formação de uma ampla Rede Antipetista, com a importante contribuição da grande mídia hegemônica, atuando principalmente nas redes sociais. Em 2014, foi especialmente no Facebook, como mostra Marcelo Alves dos Santos Junior no livro (resultado de sua dissertação de mestrado) #vaipracuba: a gênese das redes de direita no Facebook (Editora Appris, 2019) em que analisa como foram construídas verdadeiras máquinas de guerrilha contra as candidaturas do PT e prepararam o terreno para o lançamento da candidatura e vitória de Bolsonaro nas eleições de outubro de 2018. Só que nesta, mais importante do que o facebook foi o uso do Whatsapp.

Em relação ao Facebook, o livro Tudo sobre tod@s: redes digitais, privacidade e vendas de dados pessoas (Edições SESC, 2018) de Sérgio Amadeu da Silveira que “trata das relações sociais realizadas a partir do uso intensivo de tecnologias da informação e comunicação envolvendo empresas, tecnologias, dispositivos e que formam um dos mais importantes mercados da atualidade: o da compra e venda e dados pessoais”, entre outros aspectos, analisa o uso de algoritmos que são fundamentais nesse processo e afirma que eles “contém uma normatividade que delimita nossas ações e define o que teremos acesso” e que é possível considerar que os algoritmos do Facebook são formadores de guetos ideológicos (…) que isolam posições, reduzem a diversidade e as possibilidades de recombinação de opiniões”. O Facebook para ele produz bolhas ou jaulas digitais, seguindo a lógica do mercado de dados.

O mesmo pode ser dito em relação ao Whastapp, que também produz bolhas e jaulas digitais, ou seja, a possibilidade de dirigir mensagens a determinados grupos (guetos/bolhas/jaulas). O seu uso de forma intensiva foi de fundamental importância nas eleições de 2018.

No dia 8 de outubro de 2019, uma matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo mostra que o aplicativo admitiu, pela primeira vez, o envio ilegal de mensagens em massa durante as eleições presidenciais de 2018, que favoreceu o então candidato Jair Bolsonaro. Segundo a matéria, Bem Supple, gerente de políticas públicas e eleições globais do Whatsapp, em uma palestra no Festival Gabo, na cidade de Medellín, na Colômbia, afirmou que “Na eleição brasileira do ano passado houve uma atuação de empresas fornecedoras de envios maciços de mensagens, que violaram nossos termos de uso para atingir um grande número de pessoas”.

Um ano antes, em 18 de outubro de 2018 e antes também da realização do segundo turno das eleições presidenciais, uma matéria publicada na Folha de S. Paulo, assinada por Patrícia Campos Mello afirmou que empresários apoiadores do então candidato à presidência Jair Bolsonaro pagaram empresas de marketing para disparar mensagens contra Fernando Haddad (PT). Segundo a matéria: “Empresas estão comprando pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no Whatsapp e preparam uma grande operação na semana anterior ao segundo turno. A prática é ilegal, pois se trata de doação de campanha por empresas, vedada pela legislação eleitoral, e não declarada” e que “A Folha apurou que cada contrato chega a R$ 12 milhões e, entre as empresas compradoras, está a Havan. Os contratos são para disparos de centenas de milhões de mensagens”.

Qual foi o cenário em que isto foi possível? O de eleitores desencantados com o sistema político, partidos e políticos, e mesmo com a própria democracia, e para esse público é que foram criadas as condições para mobilizações antipartidárias e apartidárias, e especialmente antipetistas, com influenciadores digitais propagando conteúdos direitistas que atraíram milhões de seguidores nas mídias sociais usando fake news, slogans (como “vai para cuba”), discursos contra os partidos e a favor de uma intervenção militar, teorias paranóicas e conspiratórias como a acusação do Foro de São Paulo de ser o centro irradiador do comunismo na América Latina, procurando vincular o PT com o PCC e as Farcs, etc. Enfim, um conjunto diversificado de ações, que pavimentaram a campanha eleitoral da direita e que teve êxito, com a vitória do seu candidato, demonstrando capacidade de articulação, organização e influência, criando “bolhas” entre seus seguidores, imunes à razão, a lógica e a sensatez.

As mídias digitais, portanto teve um papel fundamental nas eleições e nesse sentido um aspecto relevante é saber se ainda há perspectivas da reconstrução social dos partidos. Peter Mair, cientista político holandês, no artigo Há futuro para os partidos? (Revista Política Democrática, 2000) afirmou naquele momento que as perspectivas eram desalentadoras porque os partidos haviam perdido seus vínculos sociais e se tornaram verdadeiras “máquinas eleitorais”, com cada vez mais empobrecida suas funções representativas, preocupados apenas com a conquista e preservação do poder, de gestão burocrática e cada vez mais dependente de recursos estatais.

A questão dos recursos, a dependência do Estado, é fundamental e pode ser exemplificada na briga recente do PSL, que culminou com a saída do presidente Jair Bolsonaro para a formação de outro partido. Além do controle das instâncias decisórias, havia uma disputa também e principalmente pelo controle de recursos dos fundos partidário e eleitoral. Em 2018 o PSL recebeu cerca de R$ 17 bilhões entre recursos do fundo eleitoral e do fundo partidário e mantido a bancada para as eleições municipais de 2020, havia uma expectativa de que recebesse em torno de R$ 360 milhões de financiamento público. Além disso, há de se considerar o fator importante que é o tempo do horário eleitoral em rádio e TV, que são determinados pelo tamanho da bancada eleita. O fato é que embora tenha sido eleito com apenas alguns segundos de tempo de rádio e televisão e com poucos recursos do fundo partidário e eleitoral e das críticas ao chamado establishment político, Bolsonaro sabe da importância dos recursos nas eleições.

Como aponta Jairo Nicolau “é no financiamento que a dimensão paraestatal dos partidos brasileiros fica mais evidente (…) além do fundo eleitoral e da propaganda veiculada em ano de eleição, os partidos passaram a receber generosos recursos para fazer campanha. O valor para a disputa em 2020 ainda não está definido, mas no pleito de 2018 foram gastos R$ 1,7 bilhão em pouco mais de 60 dias de campanha oficial”.

Se a mídia digital tem um papel cada vez mais relevante nas eleições, qual a importância dos partidos? Apenas o de viabilizar candidaturas? É possível prescindir dos partidos? A crítica ao modelo de representação não deve significar rejeição aos partidos e tampouco a democracia. Como disse Marco Aurélio Nogueira no referido artigo se os partidos são pouco eficientes enquanto instâncias de representação ainda têm um papel fundamental para estabilidade do sistema político.  As democracias precisam de partidos para funcionarem, mas não como tem ocorrido no Brasil na maioria dos casos, partidos apenas como meras legendas de aluguel.

A luta para conquista do poder político nas democracias passa pelo fortalecimento dos partidos, portanto não se pode nem se deve prescindir dos partidos nem da participação política. Quando se rejeita os partidos e não participa das eleições, abre-se o caminho para demagogos, populistas que apenas usam os partidos e reforçam o processo de exclusão dos cidadãos de participação e do poder político.