Fagner Torres de França: Poeta do silêncio, oleiro do pensamento (Resenha)

 

Em Antes de nascer o mundo, publicado em 2009, o escritor moçambicano Mia Couto narra a história de cinco pessoas refugiadas em um pequeno lugarejo em Moçambique rebatizado de Jerusalém. Para fugir dos conflitos dos homens e das agruras da vida, recriam um lugar quase mítico, algo entre o sonho e a realidade, a prosa e a poesia. É lá que mora o pequeno Mwanito, conhecido pelos habitantes do local como o afinador de silêncios, assim mesmo, no plural, porque, diz o personagem, “não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez”.

Distante de Moçambique, nas terras do Rio Grande do Norte, mais precisamente no município de Assu, a 220 km de Natal, vive um personagem da vida real que bem poderia ter saído da pena de Mia Couto. Sua Jerusalém, quase mágica, localiza-se às margens da Lagoa do Piató. Seu espírito, sempre à espreita, eternamente prenhe de curiosidade, atento aos sinais do mundo, é tão jovem quanto o de Mwanito. Os silêncios são sua principal matéria-prima, tecendo com eles belíssimas quietudes, delicada sabedoria. Seus amigos o chamam de “poeta do silêncio”, “oleiro do pensamento”.

Francisco Lucas da Silva, ou simplesmente Chico Lucas, é o personagem central do mais novo livro da professora titular dos departamentos de Educação e Ciências Sociais da UFRN Maria da Conceição de Almeida juntamente com o jovem e talentoso professor Thiago Emmanuel Araújo Severo, também do departamento de Educação.

Francisco Lucas da Silva: um sábio na natureza, uma parceria entre as duas maiores instituições públicas do Estado, a UFRN por meio do Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM) e IFRN por meio de sua Editora, é um livro de religação. Apesar do corte acadêmico, é uma narrativa leve e saborosa, quase romanceada, cheia de imagens, memórias e afetos, capaz de religar homem e natureza, razão e sensibilidade, ciência e amor. E poder ser lido, de fato, como um romance: seu enredo conta a história de como um encontro casual, às margens da Lagoa do Piató, em 13 de junho de 1986, entre Ceiça Almeida e Chico Lucas, vindos de dois universos diferentes, literalmente mudou a vida de ambos. “Eu tinha aportado lá no barraco onde eu vendi o peixe e tive o prazer de conhecer a professora Ceiça”, relembra Chico.

Um encontro providencial, quase um destino. Ceiça Almeida, já uma das grandes intelectuais do Estado, com vasta bagagem filosófica, sociológica e antropológica, querendo ancorar cada vez mais suas ideias no movimento da vida real; e Chico Lucas, que jamais frequentou a escola, mas dono de um conhecimento teórico-prático da natureza que não se encontra nos mais sofisticados círculos universitários. “É preciso saber ler os sinais da natureza”, diz ele. Frase que soa mais como um aviso para um mundo imerso na tecnociência. Mas o importante é que desde então se iniciou um intenso processo de diálogo, troca e retroalimentação de conhecimentos.

O livro é composto por seis capítulos. O primeiro é a reedição de um livro publicado pela primeira vez em 2006 e já esgotado (mas disponível na internet), chamado A natureza me disse. Trata-se, como diz a própria apresentação escrita pelos autores, “de um conjunto de entrevistas concedidas ao longo dos últimos vinte e oito anos pelo norteriograndense Francisco Lucas da Silva a biólogos, filósofos, historiadores, sociólogos, enfermeiros, antropólogos e educadores ligados ao Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM) da Universidade Federal do Rio Grande no Norte”. Os demais capítulos são inéditos, contendo ensinamentos (de geologia, fauna, flora, fenômenos físicos, clima etc.) de Chico Lucas, registros fotográficos e cartas de vários professores universitários homenageando o mestre e amigo da Lagoa do Piató.

O livro dá ao leitor o claro sentimento de estar acompanhado de um homem singular, um pedagogo da fraternidade ecológica, capaz de conectar o conjunto de saberes que a universidade muitas vezes insiste em fragmentar.  Vale a pena ler uma de suas lições: “A leitura da natureza envolve muitos aspectos. Por exemplo, não é somente a planta ou somente o animal. Envolve o homem, a geologia, as rochas. Você talvez até ignore e diga: ‘mas Chico, eu sou um biólogo, eu trabalho com as águas’. Mas como é que você vai encontrar um diagnóstico nas águas se o impacto que está acontecendo é por conta da degradação das nascentes do riacho? Então você tem que trabalhar a geologia. Quer dizer, chegando lá você vê que há um impacto naquela nascente toda desmoronada, como você viu ontem aqui. Foi ali que eu constatei a degradação daquela chapada calcária e relacionei com o impacto nos peixes das águas aqui na Lagoa Piató. Levei um tempo para ver que todo o dano causado foi por conta daquele desmatamento na aba da serra. Mas e se a gente não tivesse ido ali ? Se eu não tivesse estudado aquilo? Eu não teria esse diagnóstico nunca para contar para vocês”.

Sua capacidade de perceber, decifrar, compreender, interpretar e relacionar os sinais da natureza faz de Chico Lucas aquilo que os autores chamam de intelectual da tradição, que, segundo Almeida, “são os artistas do pensamento que, distantes dos bancos escolares e universidades, desenvolvem a arte e um método para ouvir e ler a natureza à sua volta”.

Mas que não se engane o leitor com uma leitura rápida e superficial das palavras. Para Chico Lucas, “O ser humano nunca vai conseguir, por mais sábio que ele seja, descobrir o que é a natureza, porque a ciência avança muito, mas ela só faz degradar. E a natureza é muito além da sabedoria do homem. E tem suas revanches, dando o troco à ciência”. E essa preocupação com a relação predatória que o homem estabelece com a natureza coloca esse intelectual da tradição – ao lado de nomes como Isabele Stengers, Bruno Latour, Vandana Shiva, entre outros – na vanguarda do pensamento.

Francisco Lucas da Silva, um sábio na natureza é um livro para qualquer pessoa interessada em um bem-viver. Todos os textos falam do sábio da natureza, mas também do homem acolhedor e generoso. Como nesse relato de Silmara Lídia Marton, professora do Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora colaboradora do Grecom: “Posteriormente, já morando em outra cidade, visitei Chico Lucas e sua família mais algumas vezes. Sempre senti verdade, cumplicidade e afeto. Isso tem um valor incalculável! Quando estou perto deles, fico em paz”.

Finalmente, para o leitor sem rumo, inserido num mundo de incertezas e constantes mutações, que se sente perdido na vida, fica uma última mensagem de Chico Lucas: “Cada um nasce para uma formação e nós precisamos de todas. Nem todo mundo tem a aptidão para ser doutor, pra se formar na universidade. É por isso que existem tantas profissões que se aprende e se ensina fora da universidade. Cada um de nós tem uma importância no lugar em que vivemos, cada ser na natureza tem a sua importância no ecossistema no qual está inserido”.

Fagner Torres de França – jornalista.

 

Titulo do livro: Francisco Lucas da Silva, um sábio na natureza

Organizadores: Maria da Conceição de Almeida e Thiago Emmanuel Araujo Severo

Editora: Natal: IFRN (Primeira Edição 2015; Reimpressão 2016)

Numero de paginas: 187  

Preço: 30 reais

Lançamento: Cooperativa Cultural Universitária;

Data: 8 de dezembro de 2016. Horário: 17 horas