ENTREVISTA – Íris Cavalcante

Autora de Vento do 8º andar (Poesia) e Por quem elas se curvam (Romance), a escritora cearense Íris Cavalcante traz ao público a antologia Crônicas de uma Fortaleza Obscena, um e-book disponível para download gratuito, que conta com textos de escritoras e escritores do Brasil e de outros países.

Com um forte engajamento político e literário, Íris mantém em seus escritos um posicionamento firme e crítico, tendo como um dos temas centrais o ser feminino, ou a mulher, dentro da sociedade.

Conversamos um pouco com a autora, que nos contou sobre seus processos criativos, projetos, trajetórias e muito mais.

(Para baixar a antologia, clique na imagem ao final da entrevista.)

 

O mossoroense: Íris, conte-nos um pouco sobre você.

Íris Cavalcante: Nascida numa cidade do interior do estado, Baturité, magricela, tímida, não conseguia ser engraçada nem popular, mas fazia ótimas redações, então eu me aproveitei disso. Pra alguma coisa eu tinha que servir (risos), daí comecei a escrever poemas e me destacava por escrever bem – como diziam.

OMAntes da escritora, supomos a leitora… Como se deu esse processo com você, como surgiu o impulso de passar da leitura para a escrita?

Íris Cavalcante: Sim, a escritora que sou hoje é resultado de uma leitora que começou na adolescência quando eu ganhei a coleção completa de José de Alencar, do meu irmão-padrinho. Não li todos, claro, mas O tronco do Ipê foi uma das leituras mais marcantes da minha adolescência. Li muito da biblioteca do colégio salesiano onde estudei, quando vim morar na capital comprava livro nos sebos, porque a grana era curta, e fui me tornando, aos poucos, uma leitora crítica e exigente.

OM: Apesar da literatura ser um ambiente que amplia as discussões, ainda percebemos uma filosofia um tanto retrógrada em relação a muitos preceitos, como, por exemplo, o machismo. Como escritora na atualidade, comente um pouco sobre a importância de um posicionamento questionador.

Íris Cavalcante: Essencial esse posicionamento questionador, a partir do nosso lugar de mulheres. Acho que toda mulher deve ser feminista. Eu costumo dizer que somos feministas até mesmo pelas mulheres que não são, ou acham que não são. Entenda aqui o feminismo não como o contrário do machismo, não queremos ser antagonistas dos homens, queremos ser aliadas deles nesta luta por igualdade de direitos. Aí o feminismo se diferencia do machismo, que é um sistema de poder opressor, que nos machuca, nos rouba, nos humilha e nos mata. Nós reivindicamos respeito e direitos iguais.

OM: Em 2018, com o livro “Vento do 8° andar”, você foi finalista do Prêmio Jabuti – Poesia, um dos prêmios literários mais conhecidos no Brasil e também no exterior. Isso teve alguma consequência em seu processo criativo?

Íris Cavalcante: De introspecção e imersão na minha escrita. De repente, os poemas da garota tímida que não conseguia ser engraçada tavam sendo validados por uma banca nacional. Então eu me dei conta da minha responsabilidade com a palavra impressa. Eu realmente fiz um movimento contrário à exposição daquele momento, eu revisitei meus escritos pra entender a minha voz literária, saber o que eu queria dizer e para quem. Fechou-se um ciclo ali. Nasceu outro ciclo a partir de Por quem elas se curvam, onde se percebe notadamente a minha voz literária e o público que quero alcançar.

OM: Como você avaliaria o cenário cultural/literário da cidade onde reside?

Íris Cavalcante: Múltiplo, plural, rico, lindo, cria da resistência e cheio de afetos. Fortaleza é uma cidade com uma desigualdade social que salta aos olhos a cada sinal, e muitos artistas impõem um grito de protesto contra isso em suas narrativas. Há um movimento cada vez mais crescente de uma escrita periférica que chega potencialmente para desassossegar as elites, bem como a escrita de mulheres e de coletivos que se unem para produções multiautorais. Há um sentimento de partilha entre autores e autoras de hoje, muitas de nós não estamos inseridas no mercado editorial e essa sustentação coletiva é fundamental para que o nosso trabalho alcance mais pessoas.

OM: Estamos em um período complicado para a cultura – e para muitos outros setores. Isso é algo que exige novas posturas, para além da produção (escrita) em si, como a divulgação e um maior engajamento. Comente um pouco sobre a importância da leitura de contemporâneos para a formação humana que ainda precisamos.

Íris Cavalcante: A arte precisa refletir o seu tempo, seu contexto histórico, e fazer uma leitura dessa narrativa. O artista não pode ignorar essa urgência, não confio em artistas que querem agradar a todos, sob um véu de neutralidade. Estamos travando uma luta desigual em que, de um lado, está a democracia e a justiça social, e do outro, o obscurantismo e o fascismo. Artista precisa dizer a que veio, deixar claro o seu lado, registrar e denunciar o seu tempo, o descaso com a vida, o deboche institucionalizado, essa crise humanitária e de valores. Não entendo outro sentido para a arte.
A literatura contemporânea produzida aqui no Brasil é muito rica, a diferença é que alguns escritores estão dentro do mercado editorial, outras como eu e muitos aqui do Ceará, bancamos a nossa escrita e precisamos de outra atividade para sobreviver.
Gosto muito dos nacionais e dos portugueses contemporâneos.

OM: Recentemente, você organizou e editou uma antologia de crônicas, chamada Crônicas de uma Fortaleza Obscena, que reúne textos de escritores das mais diversas localidades. Conte-nos um pouco sobre a ideia desse projeto. Quais foram os seus maiores desafios durante a realização?

Íris Cavalcante: A ideia nasceu de um episódio de injustiça que vivi, e eu só conseguia definir aquela situação como obscena. A Justiça, enquanto um poder, pode ser uma fortaleza obscena se escolhe o lado do opressor em vez de proteger o injustiçado. Mas eu quis saber qual era o olhar das outras pessoas sobre o que virou a temática: Fortaleza obscena. Então elaborei um edital, publiquei nas redes sociais, divulguei num site de concursos literários com alcance dentro e fora do Brasil, e combinei com o Eduardo Ezus da Tamarina Literária para publicar o e-book, com download gratuito. O resultado foi surpreendente, emocionante e prazeroso, logo nascia uma antologia e uma nova rede de afetos.

OM: Quando idealizou a antologia, ainda na fase do projeto, você imaginou que ele poderia tomar proporções maiores, como um alcance internacional? Ou mesmo a publicação física…

Íris Cavalcante: Não mesmo. Foi tudo muito rápido, da ideia à realização foram dois meses, me surpreendi com o alcance, com a qualidade dos textos, com a diversidade dos perfis dos autores e autoras, com as variações semânticas dadas à palavra obscena e à fortaleza. Alguns enxergaram a cidade, outros enxergaram uma fortaleza imaginária. Alguns narraram Fortaleza sem conhecê-la, mas pesquisando sobre ela, como o português Jaime Soares, o arquiteto italiano Alberto Arecchi e o alemão residente em Curitiba David Ehrlich. Então, foram vozes plurais que convergiram para o que hoje é uma antologia aplaudida e publicada no Tamarina Literária. Pode até ser que saia em versão física. Aproveito para agradecer sua participação e parceria na publicação do e-book; a intensidade de todos os textos como o da Patrícia Baldez e da Vânia Queiroz, que abordaram o assédio sexual infantil e o preconceito estrutural, respectivamente; agradecer à artista Rebeca Gadelha pela capa linda e cheia de simbolismos de nossa cidade; e ao jornalista Alberto Perdigão pelo texto poético que abre a antologia.

OM: Está envolvida em mais algum projeto nesse momento?

Íris Cavalcante: Temos um sarau no Rio no final desse mês, idealizado pelas amigas Alana Girão e Marta Pinheiro, um livro de crônicas a ser publicado por uma editora de Fortaleza, e continuar divulgando o Por quem elas se curvam e o Crônicas de uma Fortaleza obscena.
Não consigo fazer planejamento de escrita, sou a compulsiva das cadernetas dentro da bolsa, então uma ida ao cinema ou ao centro da cidade ou ao supermercado, rende um texto. Tenho muita coisa pra organizar em arquivos, pra depois pensar em publicação.

OM: Sempre ouvimos que o setor cultural é um dos mais extenuantes, que faz-se muito e recebe-se pouco “em troca”. No entanto a arte e a cultura são indispensáveis a vida. O que você diria para escritores e artistas que estão iniciando?

Íris Cavalcante: Ler muito para tornar-se crítico diante de um mundo caótico. Encontrar seu texto, sua voz narrativa, ter consciência do que quer dizer e para quem quer dizer e fazer o trabalho de escrita com muita seriedade. Um dia, alguém vai te ler, se reconhecer na sua escrita, e você vai agradecer por isso, nem que esse leitor seja você mesmo.

 

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