Desinformação afasta brasileiros de doação de órgãos: uma pessoa pode salvar 50 vidas

“O transplante, para a maior parte das pessoas, é a chance de uma nova vida. Esperar um órgão é deixar a vida da gente em suspenso durante um grande período. Uma espera sem fim”. A agonia relatada pela comunicadora Renata Vilela, 34 anos, é a mesma sentida por 45 mil pessoas que estão na fila de transplante de órgãos no Brasil, segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos.

A notícia de que a família de Gugu Liberato, que morreu na semana passada após um acidente doméstico em Orlando, nos Estados Unidos, respeitou a vontade do apresentador e autorizou a doação de seus órgãos, trouxe à tona a discussão sobre a importância da escolha. Foi anunciado que até 50 pessoas receptoras de órgãos, tecidos e ossos poderiam ser beneficiadas com a ação.

Aberto ao público, o velório de Gugu ocorreu na Assembleia Legislativa de São Paulo e terminou às 10h desta sexta-feira (29).

Foi uma decisão como a do apresentador que mudou a vida de Renata. Após apresentar sintomas como magreza extrema e palidez, a jovem, então com 19 anos, enfrentou uma série de exames e se assustou ao descobrir que havia perdido a função renal.

Diagnosticada com insuficiência renal crônica terminal, assim como seu pai, ela entrou na lista do Sistema Nacional de Transplante e Doação de Órgãos, do Sistema Único de Saúde (SUS).

Balanço divulgado pelo Ministério da Saúde em 27 de setembro do ano passado, Dia Nacional de Incentivo à Doação de Órgãos, aponta que o SUS conta com cerca de 1,1 mil equipes transplantadoras no país e é responsável pela realização de 96% dos procedimentos.

A busca

Filha única, Renata não pôde receber a doação dos familiares mais próximos. O pai dela já havia morrido e a mãe doou um dos rins para o marido. Outros membros da família apresentavam incompatibilidade sanguínea, uma das principais condições para a doação ser realizada.

Enquanto vivia a “espera sem fim”, como define a comunicadora, escolheu a diálise peritoneal como tratamento, um processo de depuração do sangue no qual a transferência de líquidos ocorre por meio do peritônio, uma membrana que recobre as paredes do abdômen.

Moradora de São Carlos, interior paulista, mudou-se para a capital e iniciou o tratamento no Hospital do Rim. Três anos e meio depois, o corpo deu sinais de que a diálise já não era tão eficiente e o transplante do órgão se tornou a única opção para que Renata tivesse uma boa qualidade de vida.

Sem perspectiva de receber uma notificação do sistema de doação e prestes a iniciar a hemodiálise, Andrea Reusing, madrinha da jovem, decidiu doar um dos rins para a afilhada.

Mesmo sem laços sanguíneos, a compatibilidade entre elas foi maior que 45%, o suficiente para que o transplante ocorresse. Apesar das dificuldades inerentes ao procedimento, elas seguiram adiante.

Hoje, 11 anos após o transplante, Renata não tem dúvida da eficácia do procedimento e do bem que a escolha da madrinha a fez.

“O transplante foi uma alternativa muito boa para minha vida. Eu devo muito à minha madrinha, em primeiro lugar, que se dispôs a me doar um órgão ainda em vida. Por mais que durante a diálise eu conseguisse ser produtiva, eu não conseguia, por exemplo, estudar e trabalhar. Eu só podia fazer uma das duas coisas. Felizmente, a minha mãe conseguiu me sustentar durante esse período”, relembra.

Renata conta que o ato de solidariedade de Andrea permitiu uma nova possibilidade de vida para ela. “Depois do transplante, eu consegui fazer os dois: estudar e trabalhar. Eu consegui viajar. Eu consegui ter uma vida muito melhor, com mais mobilidade, com mais liberdade. Moldar a vida a partir de um tratamento te deixa preso e o transplante renal é um tratamento que te dá a possibilidade de viver de uma forma livre, sem dor”.

Panorama brasileiro

O Brasil está em 23º lugar no Registro Internacional de Transplantes e Doações de Órgãos, com taxa de 17,7 doadores efetivos a cada um milhão de habitantes. A Espanha lidera a lista, com 48,3 doadores por um milhão de habitantes.

Para Edison Souza, professor adjunto do curso de Nefrologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), a quantidade de pessoas na lista de espera e o baixo número de indivíduos que se identificam como doadores resultam da desinformação e da falta de diálogo que existem na sociedade.

Na avaliação do especialista, a ausência de instrução gera questionamentos sobre a idoneidade e a transparência dos procedimentos. Dados da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos mostram que cerca de 43% das famílias ainda se recusam a doar.

“As pessoas não doam porque não conversam, desconfiam, têm medo. Elas desconfiam que podem ser mortas, que existe tráfico de órgãos, crianças acordam em uma banheira gelada. As chamadas lendas urbanas. Mas não temos nenhum tipo de interferência. É tudo computadorizado e já vem para mim a pessoa que vai receber o órgão. Por que não temos o hábito de conversar sobre isso e dizer que somos doador? Porque falta instrução”, comenta Souza.

Ele assegura que o processo é o mesmo para todas as pessoas que precisam de um órgão, independente de ser uma pessoa pública, de raça, gênero ou classe. “Não existe nenhuma interferência social, econômica ou de interesse pessoal na alocação ou distribuição dos órgãos”, frisa.

Na opinião do nefrologista, casos de repercussão como o de Gugu Liberato ajudam no esclarecimento público sobre a doação de órgãos e de sua importância, o que pode resultar em crescimento no índice de doação.

Mas como funciona?

A doação de órgãos pode ser feita em vida, como no caso de Renata, ou após constatação de morte cerebral, conforme estabelecido pela Lei 9.434/97.

Os procedimentos só podem ser realizados após a autorização familiar. Portanto, para ser um doador, basta conversar com sua família sobre o assunto.

O doador vivo pode fornecer, por exemplo, um dos rins, parte do fígado, parte do pulmão e da medula óssea. Já os demais órgãos e tecidos como coração, pâncreas, intestino, córneas, ossos, cartilagem, peles e válvulas cardíacas, só podem ser doados após a morte.

Os pacientes que necessitam de um transplante aguardam em lista definida pela Central de Transplantes da Secretaria de Saúde de cada estado, e controlada pelo Sistema Nacional de Transplantes.

Segundo Edison Souza, o rim é o órgão mais transplantado no país, seguido pelo fígado. Em relação aos tecidos, as córneas ocupam o primeiro lugar.

“São milhares de pessoas que precisam de órgãos e algumas não conseguem sobreviver. Não existe uma máquina que substitua [um órgão] para quem precisa de um coração, de um fígado, de um pulmão. Para o transplante de rim, existe a diálise, que é uma alternativa, mas a pessoa tem que ficar fazendo a hemodiálise ou a diálise peritoneal a vida inteira. Doar é ajudar pessoas que perderam funções de órgãos vitais e não vitais”, afirma Souza.

É importante que o doador e o receptor tenham a mesma tipagem sanguínea, para que a possibilidade de rejeição seja a menor possível. De acordo com o nefrologista, existe um sistema de compatibilidade genética chamado HLA que analisa a possibilidade de transplantes. Quanto mais compatível o doador falecido for com a pessoa que está na fila, maior o sucesso do transplante.

“Isso é feito de maneira computadorizada. As pessoas tiram o sangue nos institutos de hematologia e fazem a tipagem HLA. Então, após jogar no computador, sai a lista sequencial daqueles que são mais compatíveis com ele”, explica.

Souza acrescenta ainda que o estado de saúde e a gravidade do receptor contam na avaliação de direcionamento dos órgãos doados.

Saúde pública e universal

Todo o processo da doação de órgãos no Brasil é feito pelo SUS, ou seja, é totalmente gratuito. Para evitar a rejeição, são utilizados remédios imunossupressores continuamente, também disponibilizados pelo SUS.

“O grande fantasma do transplante é a rejeição. Pode funcionar ou não funcionar. No caso do rim, se não funcionar, se a pessoa precisar retirar, ela volta pra máquina de hemodiálise. No caso do coração, a pessoa falece, infelizmente”, exemplifica Edison Souza.

Além de sua doadora, Renata Vilela responsabiliza o SUS pelo sucesso de seu transplante.

“Foi ele que me garantiu um tratamento de excelência desde o momento que eu descobri que estava doente até hoje, quando me fornece medicamentos, quando ele disponibiliza os melhores médicos pra que eu seja atendida. Ele é fundado num pacto que conta com a solidariedade das pessoas. Todo mundo financia o SUS para que todo mundo possa utilizá-lo, mesmo que não diretamente”, analisa.

Ameaça constante

Devido ao transplante, tomar pelo menos três tipos de medicamentos duas vezes ao dia faz parte da rotina de Renata, além de buscar medicamentos em uma farmácia de alto custo uma vez por mês.

A comunicadora precisa tomar uma dosagem maior de remédios do que a maioria das pessoas com transplantes de rim. Geralmente é o caso que tem um doador não relacionado, ou seja, que não é parente até 3º grau.

No entanto, com os cortes na área da saúde, ela acredita que esse direito está ameaçado. Em maio deste ano, por exemplo, 25 drogas distribuídas pelo Ministério da Saúde estavam com estoques zerados. Pelo menos quatro desses remédios são para atender transplantados.

Vilela já sentiu na pele as consequências da falta de verba destinada ao SUS. Em 2016, durante o governo de Michel Temer (PMDB), não havia um dos medicamentos de alto custo que a jovem precisa tomar e não havia prazo de previsão para a entrega. Anteriormente, a entrega já havia atrasado, mas nunca suspensa por tempo indeterminado.

Com ajuda de amigos que moram fora do país e uma rede de médicos, Renata conseguiu montar um estoque da medicação até que a entrega pelo SUS se normalizasse.

A insegurança com o governo Bolsonaro também é grande. Segundo ela, a gestão do presidente descredenciou uma série de laboratórios públicos que produzem remédios para a população brasileira, entre eles o laboratório que produz um dos medicamentos de Renata.

“Houve um pânico muito grande. Eu fiquei com muito medo de que o fornecimento dessa medicação fosse interrompida. Porém, isso não aconteceu. Mas a angústia de viver em um país em que esse tipo de política pública pode ser descontinuada é muito grande. É preciso haver uma discussão sobre o papel do SUS e como ele garante a sobrevivência de muitas pessoas como no meu caso, com o medicamento de alto custo”.

O nefrologista Edison Souza pondera que, independentemente do governo e do partido que está no poder, a não disponibilização dos medicamentos assombra os transplantados. “Eles têm muito medo disso. Vivem esse problema há muito tempo. Volta e meia o nosso sistema de transplante afirma que está faltando remédio. Vemos pessoas desesperadas que, após passarem por esse calvário de quase morrer e receber um coração ou um rim, chegam na secretaria de saúde, e não recebem o remédio”, lamenta.

Souza explica ainda que se a pessoa transplantada permanecer mais de 48h sem a dose de medicação correta, pode começar a rejeitar o órgão. Em alguns casos, o quadro de rejeição é irreversível.

“Quando não tem o remédio, os transplantados começam a dividi-los ou ficam sem. E podem perder o enxerto por isso. É inadmissível uma coisa dessa. A pessoa faz um transplante, precisa de um remédio, e o governo não fornece o remédio pro indivíduo e ele vai morrer por causa disso? É inacreditável”, critica.

Procurado, o Ministério da Saúde informou que o fornecimento dos medicamentos alfaetpoetina, filgrastim, micofenolato de mofetila, micofenolato de sódio, tacrolimo, sirolimo e everolimo para imunossupressão em transplantes está regular. A pasta alegou ainda que até o 4ª trimestre de 2019, todo o quantitativo de medicamentos solicitados pelos estados brasileiros foram efetivamente distribuídos.

Para saber mais sobre a doação de órgãos, clique aqui.

*Matéria atualizada às 13h40min para inserção de posicionamento do Ministério da Saúde. 

 

Brasil de Fato