CONFIDÊNCIAS A RODRIGO MARQUES
CONFIDÊNCIAS A RODRIGO MARQUES
Clauder Arcanjo*
A vida enche-se de buracos, cai-se neles até encontrar um mais
fundo, um tão fundo que não nos importa mais subir.
Rodrigo, ao concluir a leitura do seu livro Pôr do Sol, Jangurussu, a
minha reação foi confidenciar a você toda a riqueza que me invadiu as
entranhas.
A gente não enxerga mais. Diante da pilha de sofrimentos que nos
rodeia, fartura de dor e desvalimento, viramos o rosto e fingimos não ver. Será
que com receio daquele desmundo nos tomar o corpo, gerando uma dor nos
ossos?
Rogo a Deus que tudo esteja bem com Dona Deolinda e o pequeno
Pichel. Andamos a precisar de umas rezas ou de umas meizinhas, daquelas
que saram as doenças do corpo e, em especial, as da alma.
Rodrigo, Dona Deolinda ganhou seus olhos de narrador, olhos de
menino, e nós podemos sentir “o Jangurussu se abrindo como uma vaca
podre”. E o pôr do sol de Jangurussu, pintou-o você, Menino do Buraco, ou o
Descartes Gadelha?
O sol se põe para todos, mas ninguém vê o sol da mesma cor.
O sol nunca mais será o mesmo para mim. A sua prosa poética, Rodrigo
Marques, “limpa, bonita, como quem encontra um tesouro na croa de um rio”,
rasgou-me por dentro e hoje bem sei: “O sol que se põe no Jangurussu não é o
mesmo que escorrega da Barra do Ceará para dentro de uma montanha, o sol
que se põe no Jangurussu desce diferente, sangra por fora, abre um corte feio
no ar, arranhando o que não deve.”
Minha rede servira a um dos filhos mortos do Seu Valdir Vigia, a rede
era uma ponte que atravessava o barraco do vizinho sem nome, passando
por cima da cabeça do pintor, depois, atravessava o mato e a lagoa que por
certo deveriam existir em algum lugar, sombreando uma avenida sem nome
até aportar depois do morro. Nas águas, a rede enorme, rede de defunto,
minha rede, o barco que me levaria a um sonho, a um lugar tão dentro da
minha cabeça que o pintor que chegara ontem ao Jangurussu e que se
hospedara no barraco do vizinho sem nome do Seu Valdir Vigia não atinaria
pintar.
Um sol velhaco se infiltrava por entre o gradeado da minha janela. Dei
as costas para ele, pois era daqueles que colorem de brilho um mundo que
finge não ver os sóis de outros Jangurussus.
Minha cama serviria a um dos meninos mortos do Seu Valdir Vigia?
O lixo não cabe no alfabeto. Eu acho que o lixo se alimenta do que
não presta, por isto o Jangurussu nunca chegará ao fim, o Jangurussu
ocupará a cidade aos poucos, palmo a palmo, esquina a esquina, rua a rua.
— Mas o Jangurussu não existe mais. Foi aterrado. Hoje é uma área
verde.
Alguém dentro de mim, meu outro, tenta me afastar do chorume que
corre em minha memória, Rodrigo, porém vejo sinais de Dona Etelvina, do
falecido Delegado, do Seu Valdir, de Dona Deolinda, do Pichel, de Vanderléa,
de Chico Cego, de Nonato do Anguzô… quando sinto o cheiro do visgo de
Dona Nanã. Visgo que se revela nos catadores, nos sem-teto, nos
abandonados que vagam pelas ruas e avenidas mundo afora.
E o mundo, Menino do Buraco? Terá essa consciência?
O mundo não escolhe quem vai ou não vai.
Ao despertar, corri os olhos pelas ruas da cidade: a pressa do trânsito,
as placas luminosas, as avenidas da Aldeota bem cuidadas, o ir e vir dos
casais elegantes…
E o Jangurussu? Senti um embaçado na vista e… “Foi aí que minha
memória falhou e agora estou de novo indo” reler seu livro, caro Rodrigo
Marques. A literatura não há de se omitir, nem de me deixar com o meu bigode
feito uma “asa de pintassilgo”.
… e aí o lixo fica correndo lá atrás, correndo como um cenário de um
quadro com cavalo e árvore que o vento não deixa quieto, enquanto o
peito…
O sol quer se pôr, no entanto tudo grita dentro de mim. “Plantas
nascerão na rampa… ali dorme o antigo aterro da cidade, um monte de lixo, e
que debaixo do monte, de um verde quase azul, escorre…” estas confidências.
Nossa consciência seria um faz de conta. “Era a Noite que já vinha.”
Fonte: Pôr do Sol, Jangurussu, de Rodrigo Marques (Quixadá, CE: Aluá
Editora, 2024).
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-
grandense de Letras.