Clauder Arcanjo – VERÃO

A aula transcorria normal, o conhecimento era-nos ofertado, sob as bênçãos da eficiência e do zelo, pela professora Edieni. Um curso técnico avançado sobre Primeiros Socorros.

No final da manhã do segundo dia, a professora parou a exposição, comunicando que a secretaria precisaria de nos comunicar algumas informações básicas quanto a horário, pré-requisitos, documentações para emissão do certificado e coisas similares. Foi aí que tudo mudou. Explico.

Entrou na sala uma senhorita de porte médio, com uma pasta nas mãos. Enquanto falava, um silêncio de boquiabertos invadia o ambiente. Explico melhor. Helen, era este o nome da diva, tinha uma voz melíflua e um corpo com jeito de verão. “Como verão?!…”

Explico ainda mais: Gabriela, de Jorge Amado, não tinha a cor da pele tão cravo e canela quanto a da jovem atendente. Reparei em seu rosto e constatei: seus olhos carregavam as cores da transição do Purgatório para o Paraíso; suas ancas não rebolavam, flexionavam como se possuidoras de amortecedores de “ultíssima” geração. A calça, colada, revelava-lhe a silhueta, a qual todos supunham ser a verdadeira definição de corpo escultural, ou a modo de violão.

Como os presentes permaneciam calados, enquanto ela explicava os avisos, professora Edieni interveio:

— Gente, vocês entenderam?

A resposta geral foi um “Ahn… ahn…”, emitida por seres que acabaram de sair de um grave choque hipovolêmico.

Para não faltar com a verdade, confesso: um dos alunos permaneceu incólume e de sangue frio a tudo. Apenas um. Melhor, uma. A única mulher aluna daquela classe.

Edieni percebeu a gravidade da situação e removeu a causadora do distúrbio:

— Senhorita Helen, o melhor é você retornar depois.

Contudo, quem disse que tudo voltou a ser como antes?

Os exercícios teóricos e práticos passaram a transcorrer imersos numa sensaboria e numa apatia incomuns. Sem citar que diversos alunos pediram para ir à secretaria, a fim de dirimirem algumas “dúvidas administrativas”.

Como, quando não se pode vencer o inimigo, o melhor é juntar-se ao contendor, professora Edieni fez de Verão a sua melhor aliada. Sim, alcunharam-na de Verão.

Depois do almoço, o sono sempre pedia permissão para intrometer-se, prejudicando a eficácia do método pedagógico de Edieni. Nesse exato momento, a mestra abria a porta, a conclamar Verão, e o sono saía dos nossos corpos mais do que imediatamente. Empertigados, atentos e uníssonos, professávamos:

— Entre, Verão! Esta turma é toda sua. Ai, Jesus!…

Os mais à esquerda, para não perderem nenhum detalhe da passagem de Verão da porta para o centro da classe, contorceram-se tanto que foram vítimas de entorse. Sem mencionar alguns que, mais tomados pelos anos, apresentaram uma respiração claudicante, com sinais evidentes de asma, taquicardia, dilatação das pupilas, além de cólicas renais.

O Carvalho, não muito afeito aos exercícios práticos, depressa foi voluntário para o simulado de ressuscitação cardiopulmonar (RCP), seguida de um rolamento de 180 graus; desde, foi bem claro, que a paciente fosse a Verão.

Como o quadro se encontrava rabiscado com as anotações do dia anterior, Giovanni, Barillari e eu cuidamos, por mero sentimento de educação, de pedir à Verão que o apagasse. Ela, solícita e prestativa, foi ao quadro e… apagou tudo. Desincumbiu-se de tal missão, com movimentos de quadril e de nádegas tão… tão… (como eu poderia descrever, meu Deus?!…) tão belos e coisa e tal, que um terço da classe desmaiou por hipertensão arterial, enquanto os outros dois terços mergulharam num estado de apoplexia, seguido de leseira e gagueira: “Ahnn… meu… pai… do… céu!”

Na tarde seguinte, enquanto Mendonça explanava a Sérgio acerca dos sintomas básicos de um M.V.I., grau máximo da escala de baitolagem social, o Ricardo rogava aos céus para que Verão voltasse, trazendo, na sua companhia, a Primavera.

Joel, com sua careca reluzente, arrepiava-se só em imaginar o retorno de Verão, enquanto Toledo procurava acalmá-lo: “Olhe as coronárias, você já não é mais um garoto!”.

Ao cair do dia, Décio e Fabiano estavam num simulado de emergência, retirando o aluno Douglas, politraumatizado, de um suposto carro acidentado, aplicando a Chave de Rauteck. Nesse instante, Verão pediu permissão e começou a falar. Décio e Fabiano, sem se darem conta, apertaram o pescoço do coitado do Douglas. Este, de olhos arregalados e sem oxigênio, quase se transformou numa vítima real.

Verão e a professora Edieni, incontinenti, dirigiram-se ao vitimado, passando a lhe massagear o peito, numa manobra de reanimação. Quem viu Douglas querer tornar! Sem falar que ele não largava a mão de Verão, sussurrando-lhe: “Ai, Verão!”

Alguns, tímidos, passaram a procurar Verão nos intervalos, a lhe prometerem o céu na terra. Mota, com uma barba centenária, jurava que, por ela, voltaria a ter o rosto escanhoado. Nicolaos convidou-a a visitar as Ilhas Gregas, ofertando-lhe, dado aos seus antepassados gregos, uma vida no azeite, sem estresse e sem arritmias, a quebrar pratos de felicidades nupciais. Paiva relatou-lhe a história da sua quinta doença terminal: “Vivo sempre à beira da morte, preciso de alguém que cuide bem de mim, Verão!”. O aluno Mello convidou-a para viver um amor amazônico: “Abraçados e enamorados por toda a vida entre os igarapés”. Yego, de forma franca e direta, fez-lhe juras de iniciar um regime de emagrecimento, tendo como meta um “corpito” de bailarino espanhol. André, Gabriel e Rômulo, trio inseparável, queriam iniciar uma assepsia na maca, rogando que a diva Verão lá se deitasse. Verão, traquinas e risonha, exigiu, para início de conversa, uma assepsia nos pés de Rômulo, a fim de dar cabo a tanto chulé. “Impossível, Verão! O caso é de amputação, tanto mau cheiro demonstra o avançado estado de putrefação dos membros inferiores!”; disparou a turma da geral.

Com tanta concorrência, Rubem desistiu de Verão e foi conversar, “assuntos profissionais”, com a diretora geral, aquela nominada por nós de Primavera.

A técnica de enfermagem Priscilla, a caprichar no seu sotaque carioca, tentava conter os ânimos da turma; coitada, imobilizaram-na com um colete imobilizador de coluna, tipo KED.

Certa manhã, o aluno Rayner, ao ter medida a sua pressão arterial, após um colóquio em que, comentam as más línguas, Verão soprou-lhe esperança nos ouvidos, estava com o coração fibrilando. Thiago e KP demonstraram, com prova e contraprova, que o equilíbrio emocional dos dois — “a nossa homeostasia, minha gente!” — só se daria sob os cuidados “verânicos”. Rios, alumbrado, quis escrever um poema para Verão, declamando-lhe que ele era o seu rio, ao tempo em que Verão ser-lhe-ia o mar. “Versos de pé quebrado!”; disparou o campista Francisco, com sua voz de locutor de cabaré, mostrando-lhe, também, os torneados bíceps. “Olha o rato!”; alguém gritou. Francisco foi ao chão, desmaiou de pavor e medo.

***

Na hora da prova final, todos se saíram bem. Aprovados com louvor, tivemos que retornar às nossas lides. No entanto, acredito, melhores profissionais.

E quanto à Verão?! Ela ainda continua a banhar de sol e graça o mundo árido das técnicas do curso de Primeiros Socorros. “Ai, Verão!”

Clauder Arcanjo

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