Clauder Arcanjo: PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CXXXII)

Questão de prestar atenção

 

se a gente prestar atenção e fizer silêncio

se a gente prestar atenção e fizer

silêncio

pode ser que ouça

alguma mensagem

perdida no ar.

(Marília Garcia, em Câmera lenta)

 

Volta e meia, deparo-me com um silêncio que me leva a pensar. Melhor, a prestar atenção. Em mim, em cada um dos meus sentimentos, no que me rodeia: casa, bicho, vizinhança e ambiente. Nos outros, também, claro.

Há dias em que o silêncio e a gente transformam os nossos sentidos. Como se passássemos por uma revolta dentro do corpo. Ou seria revolução? Um olhar de águia, um tato de exímio artesão, um olfato de bicho no cio, um gosto de coisa desconhecida nos lábios antes ressequidos e murchos… como se antevíssemos coisa nova no ar.

Com o tempo, percebi que, em tais situações, o melhor é deixar “isso” tomar conta da nossa individualidade; ou seja, relaxar e aceitar tal destino invadir as carnes e o espírito nossos. No final, quase sempre, se cata algo inusitado. Uma florada não pressentida, um horizonte que não havia enamorado nossa visada, um jeito da companheira a nos atentar para um agora novidadeiro e sedutor.

Certa noite, acordei assanhado por uma ideia novinha em folha: “O céu nasceu bordado de azul”. Como era madrugada, quis afundar tal despautério por entre os lençóis. Qual nada!… Quanto eu mais brigava contra ela com a espada da razão, mais aquela imagem azul me assanhava, a me cutucar todos os poros e sentidos. Tive até uma antevisão de brilhantices celestiais no oco da pupila.

Cansado, desisti, levantando-me; ao abrir a porta para a varanda, o bafio de terra e, quando arregalei o olhar, dei com o nascer de uma nova manhã. De início, estranhei; porém, ao correr a vista para o relógio percebi que dormira demais.

 

***

 

Besteira se revoltar com a revolução das coisas em volta; se querem vestir-se de dourado, fiquem logo sabendo, não há escuridão que as sepulte.

Vixe!, eu não gosto de palavras que me lembrem do fim. Sobrosso vindo de minha mãe, penso eu. “Não profira más palavras, meu filho!”; advertia-me Djanira, quando eu, em Licânia, soltava a língua a vomitar impropérios e palavras sujas, segundo a avalição dela.

Rodeado de celestiais graças: no ar, no vento e até na terra pintada de serenices, hauri o vento limpo da alvorada. Descalço, quis sentir a terra. Caminhei, arrastado pelo destino, ou coisa que o valha.

De início, meio desengonçado; com pouco mais, firme e decidido. Havia em mim, nem sabia, uma coragem de aventureiro. Sim, pois, nos dias de hoje, sair por aí, a flanar de pés livres, é ofício de loucos ou de aventureiros. Como não quero a pecha daquele, convenhamos, ficarei com a deste.

Quando, pouco mais, dei por um trinado de pássaro. Em seguida, um chilreio. Hierático, parei. Curioso, passei a correr os olhos em redor, e dei por uma árvore de galhos ressequidos. Lá no alto da sua copa esquelética, um sanhaço perdido. De um azul a bordar o céu limpo daquela manhã de fevereiro.

 

***

 

Ninguém me entendeu quando eu retornei para casa com um sorriso anil e extravagante nos lábios. Arte e engenho daquele sanhaço (ou seria do meu sonho?; ou da arte de prestar atenção?).

“Pouco me importa”; cantarolei, cá dentro, ao tempo em que assoviava, faceiro e sereno, entredentes.

Clauder

Clauder Arcanjo

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