Clauder Arcanjo – PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CXLVII)

Colóquio silente com a foto de uma matriz

 

Para o fotógrafo Otávio Mendes

 

Frente à praça desfolhada, percebo o vulto de uma igreja. Matriz da cidade? Não sei, pouco importa a resposta ou o tal lugar em que esta Casa de Deus eu flagrei.

Com pouco, estava eu no adro de Licânia, a orar silente pelos filhos meus, a pedir a bênção para Senhora Sant’Anna, matrona adorada de todos os conterrâneos, migrantes como o povo hebreu.

Logo em seguida, escuto a voz do fotógrafo a chamar a minha atenção para o flagrante da sombra, para o enquadramento forte, para o seu engenhoso captar do sonho meu.

Fico cá com a silente fotografia, e o flash gritante de uma saudade em apogeu.

 

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Na minha residência, tal qual a do Poeta de Itabira, Licânia é um quadro na parede… e como corrói. Corrói as tentativas de eu esquecê-la, corrói as pedras que atravancam o meio do meu caminho de ribeirinho, sem falar que incute uma fé terçã neste peito magro nordestino. Quando eu morrer, aqui deixo apalavrado, não quero ouro nem vela, quero uma foto amarela cravada com o nome dela: Licânia, minha aquarela.

 

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O difícil na vida é labutar sem a memória da infância, sem o patrimônio (sem valor financeiro) das amizades da juventude, sem a poupança dos sonhos utópicos. Sonhos estes nos quais dávamos uma vida por um sorriso de menina-moça.

Ouça-me, se hoje lhe falta tal herança, seja astuto e cuide de se vestir de mera criança, pois o demônio adora roubar a alma dos adultos.

 

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Em Licânia, quando o passaredo chilreava frente à Matriz, as copas dos benjamins ecoavam, os sinos repicavam, e toda a província brilhava imersa em lírico matiz. Hoje, cá comigo levo uma certeza, Ana e sua filha Maria, líticas e santas, adoravam ouvir aquele recital, ao tempo em que abençoavam o canto dos sanhaços a saudar a nova (e profana) aurora angelical.

 

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Não, Carlinhos, não foi ousadia tua me encaminhares uma fotografia de Pelotas, nos distantes pagos gaúchos. Com ela, creia-me, amigo, ajudaste-me a revisitar o rincão natal. Todas as fotos, irmão, nos levam ao nosso chão. Todo rio se parece com o de nossa província. E a saudade é bem mais guardado do que os limites do Rubicão.

Cá estou com a palavra silente, a ouvir o silêncio da memória, a rezar que a criança que nela habita não se esqueça deste adulto que hoje escreve; enquanto, crente, chora.

 

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Ontem, estava tão triste, descontente e em desalinho, pois não levava, na algibeira dos olhos meus, a rica magia de um retrato dos velhos tempos. Licânia, idílico camafeu.

Clauder

 

Clauder Arcanjo

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