Clauder Arcanjo – Pílulas para o Silêncio (Parte CLX)

(Samba, de Di Cavalcanti)

 

Nada vos sovino:

com a minha incerteza 

vos ilumino

(Ferreira Gullar, em A luta corporal)

 

A avareza dos meus olhos, na manhã em que os homens distribuem saudações protocolares, se guarda para o instante em que a minha distopia se encontrar com a tua utopia.

A minha melhor dádiva, crê-me, é a minha incerteza.

 

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Hoje não quero as flores colhidas do jardim. Não aspergidas pelo orvalho da manhã e dispostas em vasos chineses, com a mera intenção de o mundo enfeitar. Sonho tão só com o botão que se rebela no pântano das horas e oferta, teimosa, as suas cores tímidas, quando tudo em redor se banhou de cinza.

A mais bela flor é aquela que insiste na ressureição do inferno.

 

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— Alguém ouviu um poema nesta manhã? — Argui no centro da praça.

— Quem é este maluco?

— Dizem que chegou de Shangrilá e está à procura de uma tal de Musa — respondeu-me um homem de paletó e gravata, conhecido por suas posses.

— Eu cuidarei dele! — Gritou o bebâdo de Licânia, convidando-me para visitar seu recanto.

— Não se preocupe comigo, amigo, é apenas um teste que faço ao entrar em cada cidade — avisei-o.

— E caso o senhor precise de um assistente, estarei à sua disposição. Entre e vamos ouvir a minha musa, ela é tímida como o quê — e me tocou para o interior da sua morada.

À entrada, numa pequena placa no alto da porta: “Shangrilá”. Quando dei por mim, ele versejava, de joelhos, frente a um retrato de uma jovem, disposto na cabeceira do simples leito.

Os poemas vararam a noite, e eu, simplesmente, me esqueci de mim.

— Fique aqui; a casa é sua, Poeta!

 

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Entre a queda do mercado dos títulos e a queda na confiança dos homens, estarei sempre preocupado com as últimas, ações que não correm na Bolsa.

 

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Mudando de assunto, um beija-flor disse-me que não voltaria aqui, até que cuidássemos melhor de nossos jardins.

Enquanto isso, preocupa-me, os jornais não consideram isso uma notícia.

 

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Acordei ouvindo canções antigas, daquelas que minha mãe ouvia nos meus tempos de criança. Os olhos tangeram-se para um ponto distante, desfocado do agora; a mente vagou no compasso de coisas de outrora, e minha boca quis gritar um brado de rebeldia.

Quando saí de casa, um veículo desfilou pelas ruas a bradar uma canção em que o português e as damas eram maltratados.

Tapei os ouvidos e cantarolei um trecho de “Ave Maria no Morro”: “E o morro inteiro no fim do dia /Reza uma prece ave Maria /E o morro inteiro no fim do dia /Reza uma prece ave Maria…”

Valei-nos, Herivelto Martins! Ilumine-nos, Santa Virgem Maria!

Clauder

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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