Clauder Arcanjo: PÍLULAS PARA O SILÊNCIO (PARTE CLI)

Pela noite, pela paz…

 

Pela noite. Melhor, pela noite longa. Sinto que algo falta em mim. Um pé, em que o dedão nos mostrava que a raça era a nossa. Dedo inchado? Não, dedo de Arcanjo. Isso a nos fazer rir; apesar dos sapatos apertados, dos dedos doloridos, dos pequenos tufos de algodão a calçarem as unhas encravadas; apesar da dor, o que sobressaía, antes, era o riso. São coisas simples que fazem com que o ferrão da saudade nos chegue ao espírito nu e descoberto, pois não há proteção nem descanso quando a ausência é tudo em nós.

Pela paz. Melhor, pela paz que sei que não se achega. Apenas, suspeito, o tempo há de costurar a ferida, a me deixar uma cicatriz alta e estranha, que me denunciará sempre, a me gritar: “Teu pai se foi. Teu pai nunca mais há de te abraçar”.

 

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Não choro esta noite. Pouco importa, nada me consola; ao contrário, entala-me ainda mais a alma exposta, agarra-me o silêncio a um poço sem fundo, em que o desmundo de tudo não é o fim. O teu enterro, pai, não sepultou a tua falta

 

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Pela noite. Sim, pela infinita noite. Imagino-te, pai, solitário naquele ambiente em que, por último, te deixamos.

Estou quase a enlouquecer: a tua imagem mansa a dormitar fora da tua rede, sem a proteção nossa, sem a candura das mãos de mamãe a te ajeitar a roupa, a lembrar-te das medicações, da pomada na pele, a sarar tuas teimosas feridas. Teu rosto branco mancha a madrugada escura, e eu não entendo mais nada.

Estou perdido, meu pai! E não terei, parece, nunca mais a tua bússola-conselho.

 

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Lá fora, o mundo finge indiferença a mim. Não liga para meu calvário, os homens nunca foram afeitos a sentimentalismos.

Na esquina logo à frente, o dinheiro pede pressa, a labuta azucrina-me com o pragmatismo, e eu não consigo concatenar um raciocínio lógico sequer. Ser engenheiro de nada me serve; e o meu eu- poeta, coitado, este só vive a lamentar-se, sem verbo, sem rima, na Licânia sem ti.

 

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Alguém se aproxima. Baixo, de camisa passada, de voz macia. Ele para, coça o alto da cabeça branca, procura no seu entorno e… não dá por mim.

Tem o teu jeito, pai. Engano meu. Será que, em todo homem, de agora em diante, hei de procurar um cadinho de ti?

 

Clauder

Clauder Arcanjo

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