Clauder Arcanjo: Perseguição

Saiu ainda de madrugada. No alforje, um pedaço de rapadura, a cabaça com água, os arreios novos e a vontade de resolver logo aquilo tudo.

Encostou a porta, ajustando a tramela para não fazer barulho. Não queria anunciar a sua partida. Deixou a mulher e os três meninos nos lençóis.

Na porteira, deu pelo velho galo. Como se pudesse ser denunciado por aquele galináceo, arrochou o passo no sentido de pegar logo a estrada.

— Tenho que acabar logo com isso.

Uma conversa com ele mesmo, enquanto as alparcatas chapinavam na terra seca; no rosto, a bênção do orvalho em raros galhos ainda verdes. Era setembro. O inverno fora bom, mas o verão viera com força e disposição.

Após a primeira curva, serenou as passadas, pois se sentiu mais protegido.

Na cabeça, não havia plano bem traçado, tão só a agonia de pôr fim a tanta consumição. Dois meses; desde julho, que aquilo lhe aperreava o juízo. Melhor, na Festa da Padroeira, na procissão de Senhora Sant’Anna. Era 26 de julho, um domingo abafado e irritadiço.

Relembrou tudo. Chegou cedo à cidade. Na garupa da burra cardã, a produção da safra: duas sacas de grãos, de milho e feijão. Pretensão de fazer negócio, no intuito de comprar o cavalo prometido ao filho mais velho. Na Pedra do Mercado, arriou as sacas e, como não sabia o que fazer, esperou. Enxugou o suor do rosto; em seguida, tangeu a mulher e os meninos para a casa do compadre Zequinha. “Me esperem por lá. Resolvo logo isso.”

A coisa viva de novo nos olhos agateados, como se tudo de volta. “Tenho que resolver logo isso tudo…” Uma mosca varejeira quis se meter por entre os seus beiços, sacolejou o rosto, espantando-a. Com pouco, estava de novo com o cocuruto tomado pela lembrança daquele domingo.

O mercado de Licânia foi se enchendo com a algazarra dos negócios. “Quem quer, quem quer?… Vai levar, patrão? Uma dúzia pelo preço de meia dúzia. Quem vai querer?…”

Inquieto, era homem da roça, sentiu-se atazanado com tanto barulho e conversaria. Espichou os olhos, mania de sertanejo, e voltou a sentar-se sobre as sacas.

— Ô meu galego! O patrão está aqui para comprar ou para vender?

Era um homem taludo, ao lado de um cavalo branco, bonito e bem ajaezado. As roupas coloridas e o chapéu diferente, com fitas coloridas, o intrigaram de início.

— Está aqui para comprar ou para vender? — insistiu o homenzarrão.

O juízo confuso, a vontade de se juntar à família na calçada do compadre.

— Bem. De certa forma, sinhô, estou aqui para as duas coisas.

Mal bateu com a língua nos dentes, sentiu a mão fina daquele homem alto e esquisito sobre o seu ombro. A conversa espichou-se, jeito macio de agrado e decisão. Com pouco, ele repassou as suas duas sacas, recebendo um bilhete repleto de garatujas.

— Aqui está o local onde eu estou. Apareça depois da procissão com mais os cobres acertados que o cavalo é do seu rapaz, galego! Aproveitarei o tempo até lá para retirar-lhe a sela e os arreios, além de dar um banho no animal. Fez bom negócio; foi desespero meu para levar comida para os de casa. Sei que o inverno foi bom, mas a lagarta atacou o nosso roçado.

Estranhou mãos tão lisas; enxada deixa calo em qualquer cristão, pensou. Dobrou o papelote, subiu na garupa da burra e saiu.

A tarde passou lenta, num redemoinho de visões. O roçado, a colheita, as duas sacas, o homem alto e a conversa macia, a entrega da produção e… o bilhete.

Pediu um particular com compadre Zequinha:

— Preciso de uma quantia, compadre. Antecipação do carnaubal.

Pôs o dinheiro no bolso, e foi acompanhar a Santa. “Sois vivo o retrato…. No céu e na terra, sempre, sempre, decantada….”

***

No cair da tarde, após a Sant’Anna acomodada no altar da Matriz, pediu licença e foi para o local indicado. O compadre lera-lhe o bilhete, e dera-lhe o caminho do acampamento dos ciganos.

Levou arreios novos, por precaução. Como o homenzarrão falara em retirá-los, comprara uns na bodega do Paulo Amaro.

Chegando lá, deu por tudo descampado. Tão só as marcas de fogueira no chão e restos de lixo nas vizinhanças.

Um troço forte a roer-lhe bofes e entranhas. “Desgraçado!”

Sem dizer nada, socou os arreios no bisaco acomodado na garupa do muar. Chegando a Licânia, pegou mulher e meninos e, depressa, deixou a rua no rumo de casa. No céu, a companhia de uma lua nova, faceira naquele horizonte limpo. Como a zombar de tantos pensamentos cinza.

Não quis conversa no caminho. A mulher, calada, seguia-o, dois passos atrás. Os garotos, sonolentos, na cela da mula.

***

Setembro, a notícia: “Os ciganos estão na Santa Rita!”. Pouco menos de duas léguas.

Não dormiu aquela noite. “Desgraçado!”

Agora, a caminho do ajuste de contas. Conferiu os arreios que comprara no Paulo Amaro. Sem serenar o passo, engoliu um gole da água da cabaça. Vontade de resolver logo aquilo.

***

Entrou por trás do acampamento, dando com a presença do cavalo junto à última barraca. Lavado, escovado e selado, faltando-lhe somente os arreios.

Agachou-se, a conferir se todos ainda dormiam. Um frango ciscou junto aos seus pés, tocou-lhe para longe com uma decidida mãozada.

A cena, viva, de novo; como se de volta. “Tenho que resolver logo isso tudo…”

Afrouxou o nó da corda que prendia o alazão à estaca, colocando-lhe, em seguida, os novos arreios. Antes, amarrou, na ponta daquela corda, que ficou pendendo junto ao mourão, um saquinho de couro cru, que trouxera na algibeira. Dentro dele, alguns cobres e o bilhete do cigano, repleto de garatujas. “Desgraçado!”

Saiu de mansinho. Estranhando aqueles seus passos tão lisos. “Apareça depois da procissão com mais os cobres acertados que o cavalo é do seu rapaz, galego!”

Na primeira curva da estrada, montou e galopou, de volta para casa. Com um sentimento forte a amaciar-lhe bofes e entranhas.

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]