Clauder Arcanjo: MULHERES FANTÁSTICAS (XVII)

O dia não raiava, nem o tempo sarava do choro da noite. Sim, a madrugada como se derramara em lágrimas naquela chuva fina e renitente. Eu, as horas em claro, acompanhando a goteira; os pingos caindo dentro do balde posto no meio do quarto. Maldito gotejado!

Confesso que a insônia não vinha só do gotejar. Não, este apenas tornava mais viva a ferida da decepção. Aberta quando rasguei o envelope amarelo, tipo comercial, e me pusera a correr os olhos pelas letras cursivas, dispostas no papel branco e pautado. Recado direto e claro. Faca afiada no peito da esperança.

— Maldita missiva!

No entanto, meu mal fora não atinar a tempo, e a coisa resvalou para aquele desfecho.

Levanto-me, dou pela presença da janela, com seus vidros embaçados, marcados pelos respingos, que, como lágrimas, escorrem lá fora.

 

***

 

O meu primeiro bilhete fora curto:

“Reparei nos seus olhos, gostei de você.

Do seu…”

A resposta, na noite seguinte. A minha vizinha, curiosa e alcoviteira, entregou-me: um romance enviado por ela. Dentro dele, uma página marcada a lápis vermelho.

— E o que ela lhe disse, Margarida?

— Bem, ela me entregou este livro e pediu para que você lesse ele de cabo a rabo. No final, quando eu quis saber mais, ela se calou e saiu.

 

***

 

Dias depois, lido e relido aquele livro, não me aguentei. A impaciência da paixão me toldava as horas. Resolvi, então, lhe passar outro recado. Desta feita, um pouco mais direto:

“Acho que nascemos um para o outro.

Quer namorar comigo?

Do sempre seu…”

Semana passou-se, e nada de resposta.

Com um mês, quase desesperado, encontrei-me com ela, frente à pequena igreja de São João. No adro, o seu olhar me plantou nova ilusão.

Ao comentar o encontro, a minha vizinha açulou-me:

— Não desista, Lourenço. O amor, muitas vezes, aflora no ramerrão da persistência.

Armei-me com caneta e papel. A morder os lábios, instiguei a memória a me fornecer tempero para uma nova correspondência.

Depois de rasgar quase uma resma, eis o que se salvou:

“Donzela,

Não tenho arte de poeta. Sei que és digna do brilho de todas as estrelas, mas meu firmamento é tão escuro sem o teu brilho.

Do teu…”

Sobrescrevi tal mensagem; e, desta feita, resolvi levá-la eu mesmo.

No caminho, o passaredo saudava o fim da tarde. A pequena Licânia já se vestia com o manto do crepúsculo. Não sei o porquê, porém tal cenário me abrasava ainda mais o peito.

Ao chegar frente à casa de Matilde (só agora me dei conta de que não revelara o seu nome), as pernas me fugiram, a garganta me garroteou a voz e, confesso, quis fugir. No entanto, reuni forças… joguei minha mensagem por debaixo da porta da frente. E, sebo nas canelas!

Chegando à minha residência, deitei-me na rede, armada no terraço. Com pouco, entregava-me aos devaneios, tangidos pelo Cupido. “Ó minha Matilde!”

 

***

 

Minutos depois, fui desperto pela voz rascante de Maria, tia viúva que morava conosco:

—Lourenço, menino Lourenço. Alguém o procura lá fora. Cuida!

Resmunguei o despertar, e segui, a passos lentos, no rumo do portão. Tal não foi a minha surpresa: o visitante era o professor Valdomiro Petrarca, pai de Matilde.

— Podemos conversar, jovem Lourenço?

— Seu Petrarca!?… Sim… sim…

Entramos. Sentei-me antes dele; se não, as pernas me faltariam.

— Nutres interesse por minha filha?

— …

— Não vais conquistar o coração de uma dama com uma epístola assim!… — confidenciou-me, ao tempo em que sacava do bolso do paletó a minha última mensagem.

Antes que eu mergulhasse num estado de apoplexia, ele puxou uma cadeira, passando-me a soprar conselhos. O experiente mestre de português caminhou pelo vale da sintaxe, mergulhou no pântano das regências, circundou as planícies das metáforas, enquanto regava tudo com achados colhidos dos clássicos do Romantismo.

O tempo correu, e, quando nos demos conta, uma missiva longa, e bem tramada, estava escrita.

Ele sacou o relógio de bolso, dizendo-me:

— Já se faz tarde! Agora, jovem Lourenço, cuide de se aprontar e nos fazer uma visita. Costumamos receber nossos amigos depois das nove.

Abracei-o; a construção da missiva nos tornara próximos.

Aprontei-me. Contudo, antes de sair, Margarida reparou na minha roupa de festa, bem como na fragrância do meu perfume.

— Para onde vai, amigo vizinho, tão pronto e cheiroso?

Puxei-a para um canto, revelando-lhe meus planos. Ela, rogando sua condição de confidente, me pediu para ler a “romântica missiva”.

Leu-a, a coçar o nariz adunco.

— Não seria melhor você decorar uma parte e declamá-la diante de Matilde? As donzelas adoram um recital apaixonado!

Agradeci a sugestão e toquei o passo na direção da residência do professor Valdomiro Petrarca, a ler e reler o meu escrito.

Lá, bati palmas, e o professor me recebeu com um piscar de olhos:

— A que devemos a honra, seu Lourenço?

— …

Vendo-me com a voz presa pela timidez, o mestre pôs a mão sobre o meu ombro, apontando-me o interior da sala. Como recepção, uma sonata de Chopin.

Sentei-me diante da mesinha de centro.

— Aceita um café, seu Lourenço?

Pelo canto dos olhos, reparei Matilde ao piano.

— Aceito, professor. Muito obrigado.

Meia hora depois, entre duas peças de Chopin, levantei-me e soltei a voz.

Na verdade, quis soltá-la. De início, solfejei trechos da carta para, em seguida, engasgar-me com a construção dos verbos. Quanto mais tentava consertar meu “romântico declamar”, mais me atrapalhava com as construções sintáticas, afundando-me a olhos vistos.

O professor Valdomiro, boquiaberto, não entendia bulhufas.

Transido de vergonha, sentei-me, não sem antes tropeçar na mesinha, a quebrar louças e cristais.

Matilde levantou-se, baixou a tampa do teclado e, sem nos dar um boa-noite sequer, sumiu em direção aos seus aposentos.

Seu Petrarca baixou a cabeça, bradando:

— Por que, simplesmente, não lhe entregou a missiva, seu… Lourenço?

— …

— Ao coração de certas mulheres somente se chega através das palavras. No caso de minha Matilde, de longas e românticas missivas.

— Mas, seu Petrarca, eu…

— Já se faz tarde! Agora, jovem Lourenço, cuide de se despedir. Costumamos receber nossos amigos somente até as onze.

Voltei debaixo de um sereno fino. Melhor, vaguei pelas ruas desertas de Licânia.

Quando entrei em casa, o tempo não sarava o meu choro na noite. A madrugada a se derramar em lágrimas numa chuva fina e renitente. Eu, as horas em claro, acompanhando a goteira; os pingos caindo dentro do balde posto no meio do quarto. Maldito gotejado!

Rasguei o envelope amarelo, tipo comercial, e me pus a correr os olhos pelas minhas letras cursivas, no papel branco e pautado.

— Maldita missiva!

 

Clauder

Clauder Arcanjo

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