Clauder Arcanjo – Mulheres Fantásticas, Conto XVIII

A Mulher (A)Final

 

Clauder Arcanjo

 

Preso com meus fantasmas, sem palavra a escrever ou discurso a proferir, inquieto-me com o brilho da alvorada, que clareia o vazio do meu dia. Abraço-me com os lençóis, mas o costume me empurra para fora da cama.

Levanto-me e dou com a imagem do meu rosto no espelho do banheiro. Espanto-me com minha própria figura, e baixo a face, envergonhado.

A água da pia escorre, e minhas mãos de vidro não cortam a corrente. Minutos se passam, como se uma infinidade, tal a velocidade que as reminiscências se apresentam na minha mente.

Na cozinha, sirvo-me de um ovo, a lembrança de Maroca. “… enfiou os olhos no piso, a catar escolhos invisíveis”.

Na sala, os móveis cobertos pela poeira do tempo. Passo a mão direita sobre a mesa, uma revoada de sentimentos mistura-se ao pó do abandono. Um coaxar? “Mafalda Temístocles!”, “… meus pais. Eles não queriam o nosso casamento, você sabe. Parece até que estou ouvindo a cantilena, caso eu lhes revelasse: ‘Não foi por falta de aviso. Daquela família, meu filho, não sai nada de bom. Somente cobras e lagartos. Agora, a coisa resvala no seio da nossa. Por falta de aviso não foi. Isso, não!…’”

Sacudo a cabeça, troco de roupa e ganho a rua. Em cada esquina, sem rumo, os meus olhos a vagarem pelos paralelepípedos de Licânia. Frente à Matriz, uma voz. “Jasmina?!” A memória daqueles “olhos negros e fundos”, a jogarem-me “no poço da paixão”. Nada mais vejo… “senão, o brilho eterno daquele olhar”.

Um vento lambe-me a face. Arrepio-me. Dou com a imagem de Senhora Sant’Anna no largo da Matriz, o seu manto azul a combinar com o céu limpo, sem nuvens. No alto da torre da igreja, uma andorinha, solitária. Eu quero ganhar os céus, tal qual Ícaro ter asas. “Delares?”

Rodo pela cidade, sem prumo e sem rumo. Horas depois, a noite. E a leve brisa do Aracati a pentear a copa das algarobas e dos benjamins. Ouço o ronco do gerador, e, em seguida, as luzes a iluminarem os becos e as ruas da pequena Licânia. Um choque na espinha: “Fabrícia?!…” Nunca mais faltará luz em Licânia.

Numa casa avarandada da esquina, “samambaias, bromélias e dálias”. Para ser exato, um casarão com um pequeno ajardinado na entrada, “… mal cuidado, as salsas invadiam tudo, e os jarros morriam de cinza”. “E a Primavera?!…” A cabeça, um zumbido só, tal qual a de um zangão. Preciso de “conversa florida. Entre orquídeas, tulipas, bromélias…”, as horas se orvalham.

O silêncio… Quebrado por um comentário, em tom baixo: “… quando ela serviu-me, com paciência, o café recém-coado. O cheiro da bebida tomou o pequeno cômodo”. Pus o olhar na outra esquina. Quero entrar, mas a timidez me freia. “Construção simples, porta e janela, num arruado nos arredores da cidade”. Flagro uma lágrima na minha face magra. “Consolação?!…” Um vulto de mulher por detrás da porta? Pela janela, reparo que a vida, lá dentro, é boa, muito boa.

Um choro baixo, “… aquela casa de azulejos azuis…”. Ancestrais lusitanos? “Qualquer lamento sempre me interrompe os passos e faz-me cair na conta do sem jeito”. Na copa do coqueiro, um canário, mas ele não trinava. Senhora Saudade… Saudade.

Cofio o bigode… em seguida, pigarreio, como a me livrar de um nó que me prende a fala. Entro em outra rua. Com pouco, a voz portentosa: “Ímpios, ímpios!…” Querendo proteger-me, mudo o rumo dos meus passos e vejo-me frente a uma porta verde. “Haverá alguém puro entre nós?” Procuro em vão por ela, nada da senhora tão decantada por minha memória. “Laura Flores? Laura Flores?…”

Sobre mim, como a tripudiar do meu espectro, o brilho da lua. Bem alta e onipresente, seu brilho a coar-se por entre as folhas dos benjamins. A cabeça em parafuso. Cá estou, viúvo de tudo. A lua como uma dama do céu.

Benzo-me. Um filho de Deus. A cabeça à procura de um consolo. No Mercado, a preparação para a quermesse. Um gato salta à minha frente. Nervoso, indeciso, percebo um papel no bolso da calça surrada. “Uma carta dela?” Sem coragem, recorro a Deus, auxílio divino. Hauro o ar fresco da noite. A vida vale mais de que uma carta. “Florípedes?”

Coço o alto da cabeça. No rosto, um assomo de medo. Mistérios, mistérios da vida. Sem perceber, vejo-me diante de uma porta maciça, de madeira de lei. Ajoelho-me, a sangrar de saudade e… penso em Helena.

Tive a impressão de ouvir um grasnar de gaivota. Em pleno sertão?!… A minha mente a costurar o inconcebível? Sinceramente, confesso, estou cansado. Os mistérios sempre ganharam o jogo contra a minha razão. Quase grito, em desespero. Até reúno forças; no entanto, a vontade logo se esvai. Madrugada alta. Quero tirar a camisa, ofertar o meu peito opresso à brisa… Será que ela vem do mar? “Renata? É você, minha princesinha?”

Pouco depois, uma canção. “E por falar em saudade / Onde anda você / Onde andam os seus olhos / Que a gente não vê / Onde anda esse corpo / Que me deixou morto / De tanto prazer…”. Com as mãos crispadas, os olhos em fogo. O choro a querer rasgar a carne da minha face, uma dor pungente. Dou algumas passadas largas e, voltando-me, tomado de fúria, em direção… “E assim quando mais tarde me procure / Quem sabe a morte, angústia de quem vive / Quem sabe a solidão, fim de quem ama…” Indago ao novo dia, a despontar na linha do horizonte: “É você, Rosabela?” Silêncio. Este silêncio me faz mal.

Outro dia. Fungo uma tristeza miúda, e fico quieto. Tão somente baixo a vista, mexendo, de leve, as sobrancelhas curiosas. Um pássaro a trinar, levando-me a me dar conta da nova manhã.

— Seu danado! Como seria bom, porém…

Espanto-me com a assertividade da minha fala, estranhando-me. Porém… “Longe, o barulho do escape do único ônibus da cidade, saindo para a capital. Com pouco, as gaitadas do casal vizinho voltando para casa, após mais uma noitada”. Quis acordar todos os casais de Licânia, contudo…

Enxugo a testa, apuro os ouvidos, mas nada de resposta. Lembro-me de que, por essas bandas, o dia raia fresco, o firmamento encoberto de nuvens pejadas de esperança. Nas praças de Licânia, o passaredo a pontuar a manhã com seu cantar festivo. Aliso o bigode, ajeito o cabelo, e rumo para casa. Altaneiro e decidido. Quando chego bem próximo, a porta se abre e… “Lenilda?” Um sorriso desponta em mim, como milagre. “O cabelo fresco do banho, a roupa cheirando a alfazema, os olhos de gata manhosa”. Abraço-me à lembrança, e sopro-lhe algo nos ouvidos. Instantes depois, o batismo de uma chuva inesperada. “A invernada se aproxima, Lenilda!”

A insônia não me deixa dormir, confesso que não vinha só do gotejar. Não, este apenas tornava mais viva a ferida da vida.

Sento-me à escrivaninha e escrevo este depoimento.

Lá fora, Licânia oferta-se ao bulício de domingo. Os feirantes pregam seus produtos, o padre Araquento prega sua fé. A impaciência de uma nova paixão me tolda as horas, e eu escrevo. Como se um condenado à morte, confiante que este testemunho obterá a minha (ou  nossa) absolvição, apesar de não suspeitar dos motivos da minha condenação.

Acompanhando a goteira; os pingos caindo dentro do balde posto no meio do quarto, só me resta uma certeza, uma só: nunca desvendarei “A Mulher (A)Final”.

— Benditas mulheres!

 

Clauder Arcanjo

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