Clauder Arcanjo – Memória turva

A ligação telefônica me surpreendeu. Há dias não recebia notícias dele. De súbito, ao perceber a sua voz rascante e forte na linha, era como se ele estivesse ao meu lado. Com o seu porte tomado pelos anos, com a cabeça branca, mas com o corpo rijo e a franqueza de sempre. Como se já houvesse nascido determinado e resoluto.

Cobrou-me uma promessa antiga:

— Como anda aquilo que me prometeste?

O uso do segundo pronome pessoal no singular deu, à sua indagação, uma nobreza que me deixou ainda mais aturdido; eu que sempre sofrera do mal da memória turva.

Corri, depressa, os olhos na amplidão das lembranças recentes, nas gavetas das promessas recém-feitas, nada. Sem mencionar que “aquilo” não saía da sua condição de indeterminado. Praguejei contra os deuses do Olimpo da Memória Turva; aquela que sempre mantém fiapos de nuvens no céu enorme do meu esquecimento.

Quis ganhar tempo, tangendo a prosa para outro quintal:

— E o inverno? Tem chovido por aí?

Ele não me deu chances de fuga, puxou o cordão da conversa para mais junto de si:

— Por onde andas, dileto amigo?

— Estou no Rio de Janeiro, retornando para casa. Na verdade, acabei de chegar ao aeroporto. Pegarei o avião logo mais. Estarei de volta no final de semana.

Um silêncio breve. Em seguida, a sensação de que ele respirara mais fundo.

— Quer alguma coisa daqui? — indaguei-o.

— Nada, nada… — respondeu-me, num tom de voz mais baixo.

Outra pausa. Desta feita, mais espichada. Confesso que fiquei mais incomodado com os instantes de silêncio de que com a cobrança. Apesar de não me lembrar do objeto desta.

— Algum problema, meu caro? — continuei.

— Não, nenhum. De repente, sabe, acudiu-me que nesta cidade, dita Cidade Maravilhosa, vivi cinquenta e cinco anos da minha vida.

— Que bom!

— Bom?!… Bom…

Aquele “bom”, duplo e cercado de reticências, me soou mal. Será que havia, sem me dado conta, adentrado em terreno perigoso.

Pus os neurônios para fuçarem as histórias que conhecia do velho amigo. A memória turva mais se me aguçou. O que, até então, era baço, mais sombrio e indecifrável se me apresentou.

“Homem de deus, sua memória, também, é uma m…! Não ajuda você em nada de nada!” Aquele protesto interior só confundiu, ainda mais, os catados das minhas reminiscências. Embaralhando-os em confusa sequência, ligando-os a nomes outros e estranhos.

Fui salvo pela voz do amigo do outro lado da linha:

— Aí, no País dos Cariocas, tivemos nossos filhos, formamos nosso patrimônio, e fiz a minha carreira na Marinha. Quando tudo parecia coroado de êxito, eis que surge o “problema” de Matilde.

“Seu cabeça de vento, você sem querer fez com que seu amigo voltasse a relembrar momentos de dor. Sua memória turva é caso de polícia, sacana!”

Fechei os olhos, orei a Deus a remissão do meu pecado, e clamei aos céus por um auxílio. Quase ao meu lado, uma senhora beijava a face do filho, antes que ele entrasse no salão de embarque. Uma lágrima seguiu-se ao beijo, à bênção e ao abraço da mãe saudosa.

— Tive que voltar ao nosso chão. Na esperança de que, aqui, Matilde se reencontrasse com as suas lembranças e voltasse… ao nosso mundo.

— Amigo, desculpe-me… Sei o quanto dói rememorar o drama da doença de sua esposa. Não pretendia… — desculpei-me.

— Qual nada! Sonho todas as noites com o Rio, porque sei que, aí, eu ouvia o seu riso, a sua voz… Muitas vezes, ao acordar, chamo por ela, vou para o seu lado, e, quando a vejo “acordada”, os seus olhos vítreos permanecem vagos, perdidos num mundo em que não consigo penetrar, sem a luz que tanto a definia…

Silêncio longo.

Os meus olhos se embaraçam com a dor do companheiro, e a minha memória, num passe de mágica, se clarifica:

— Promessa feita, amigo, é promessa cumprida! Ao retornar, neste final de semana, vou ao teu encontro e definiremos, com todos os detalhes, aquilo que tu me pediste. Não me peça detalhes agora, a surpresa é…

A ligação cai. O telefone entra numa mudez inquietante. Levanto os olhos, a correr a vista pelo saguão do aeroporto. Na cadeira ao lado, a senhora que se despedira do filho, enxuga o rosto e, ao perceber-me, confidencia-me:

— É para o bem dele. Dói-me, mas é para o bem dele.

Clauder Arcanjo – [email protected]