Clauder Arcanjo – GOLPE NA ROTINA

Ele acordou e sentiu algo esquisito. Um enfado de tudo. Da vida, da natureza, dos lençóis (apesar de sempre cheirosos), dos compromissos insossos da manhã.

Dormir? Não, não mais queria. Levantar? Não, também isso não queria.

O telefone tocou. Baixo e insistente. Decidiu por não atendê-lo. “Praga!” Apesar do desfastio de tudo, sentou-se na cama e correu a vista pelo quarto. Sobre a mesinha de cabeceira, uma pilha de livros não lidos (muitos já empoeirados pelo abandono), o relógio de pulso, companheiro de horas. Não riu da tirada com o seu Mido. Em dias comuns, seria motivo para uma boa e longa risada. Hoje, não.

Ao pé da cama, as suas desgastadas chinelas. Presente de uma longínqua namorada. Morena bela e fornida, como bem definira o seu amigo Tomás, sempre chegado a uma afrodescendente. Tentou se lembrar do nome dela. Em vão, não conseguiu. Atribuiu o esquecimento ao fato de ter acordado com cara de poucos amigos. “Droga!”

Com o corpo pesado, levantou-se e seguiu no rumo da cozinha. Ao passar pelo corredor, antes de dar na saleta, o retrato da sua última viagem. A sua foto, com o corpo dourado pelo sol e com o mar azul ao fundo, pareceu-lhe ridícula. Teve vontade de dar um “cotoco” para si próprio, risonho naquela moldura. A imagem de um santo próximo o conteve. “Merda!”

Chegou à cozinha. Uma pilha de louças sujas o saudou. Praguejou em voz baixa. “Devia ter permanecido no quarto, morgando na cama. Seu idiota!”
O telefone voltou a tocar. Teve vontade de jogá-lo janela abaixo. Um suicídio telefônico. Sempre a tentar arrancar trocadilhos de tudo. Lembrou-se de que o aparelho era novo e custara-lhe uma nota preta. “Ideia de jerico. Colocar tanta gaita na porra de um aparelho. Só porque aquele modelo estava na moda! E moda enche barriga?” Lembrança da mãe que já partira desta para a melhor. A velha falava assim com ele, tentando incutir-lhe boas ideias. Como ela gostava de afirmar, após a saraivada de conselhos e admoestações.

Abriu a geladeira e deu com muito gelo. “Estou eu no Polo Norte? Seria esta minha casa um iglu?” O estômago roncou, não achando a menor graça com tamanha fome.

Abriu o armário. Panelas, vasilhas, jarros de louça, e, ao canto, uma lata de leite de soja. “Resto do meu penúltimo affair com uma macróbia, filha de diplomatas ingleses. Ela a tentar me fazer vegetariano; e eu, louco para espetá-la numa churrascaria. De tudo, restou… aquela latinha. De tudo fica um pouco. A voz de Drummond irritou-o. Não queria a presença do itabirano naquela manhã tão besta. Tomou um gole de água fresca e decidiu deixar de frescura e preparar um copo de leite de soja. O pragmático a vencer o chato de plantão.

Voltou para o quarto e resolveu tomar um banho bem frio. Ao ficar sob o chuveiro, a percepção de que não comprara sabonete. Decidiu, então, se ensaboar com a espuma do xampu de gengibre. Única coisa que restara do namorico com Esmeralda, a portuguesinha da faculdade. Ela a tentar convencê-lo de que, depois do fado e do azeite português, o xampu de gengibre era um santo remédio para o corpo e para a alma. Como estava com a boa intenção de levá-la para a cama, comprou vários discos de fado, sortiu a despensa com azeite lusitano e cuidou de colocar, bem à vista, o xampu de gengibre dentro do box do banheiro. Depois da primeira transa, a portuguesinha virou, com certeza, um (en)fado. “Ó mar salgado, quanto do teu sal são piadas de Portugal?” O trocadilho com os versos de Fernando Pessoa arrancou-lhe um arremedo de sorriso da face turva.

Ao sair, a toalha branca e grande. Nela, bordado em letras vermelhas: “Eu te amo, Adailton!” Regalo da espanhola Samires. Ousada e safada madrilena. A voz rascante dela ao seu ouvido: “Yo soy… maluquinha!” Num portunhol que, de início, incitava-o; mas que, com o passar dos dias, aborrecera-o. Na despedida, ela quebrara tudo no seu apartamento. Salvara-se apenas aquela toalha que, na ocasião, estava no baú de roupas sujas. “Maluquinha!”

Adailton reuniu forças. “Vamos, homem!” Trocou de roupa, cofiou o bigodinho ralo e pegou as chaves para sair. Ao abrir a porta, a saudação:
— Para onde você pensa que vai, seu cretino?

— Para os seus braços, querida. Para onde mais?! Pensei que não viria! Você tinha se esquecido de mim, tinha?

Era Tatiana Beriskaia, a sua nova (e fortíssima) namorada russa. Exímia lutadora de artes marciais. No primeiro golpe de Tatiana, lá se foi para a cucuia todo o desfastio existencial de Adailton. “Ui!…”