Clauder Arcanjo – Ficções pequenas

Deusa

Ninguém levanta impunemente os olhos para uma deusa.

(Cesare Pavese, em Diálogos com Leucó)

Na comissura dos lábios, o indecifrável. No canto do olhar, a perdição. No ritmo das pernas, o abismo.

Parou frente a todos. Estes, atemorizados e trêmulos, abaixaram-lhe a vista.

Lá do fundo, da infância das primícias, um se alevantou. Na caminhada, desfez-se dos mitos e das lendas, como a querer (re)provar, e beber, o inominável e o infinito. Frente a frente com ela, mergulhou no azul dos seus olhos, a beber do vinho da Quimera, envelhecido nos cântaros do sem-sentido.

Ao perder de todo a Razão, acoitou-se, copulando com ela sob o império da Noite, no sereno da bênção das lágrimas da Alegria. Ele, fez-se louco; ao tempo em que ela, travestida de escrava, assumiu a condição de Deusa.

***

Cuidado

Nada no horizonte. Nenhum fiapo de nuvem. Apenas, o sol de dezembro.

Dentro de casa, o gato e o cachorro, tímidos e famintos. No alpendre do velho casarão, herança de gerações, a mulher e os meninos.

A mão na enxada, com o cabo liso pelo uso. No armador, o chapéu de couro, velho companheiro.

Na descida para o roçado, os olhos na companheira. Esta — cabelos em desalinho — com as mãos descarnadas a segurarem o vestido de chita; as crias em círculo. “Cuidado com a vida, homem de Deus!”

Clauder Arcanjo

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