Clauder Arcanjo – Exercício da dúvida

Se o exercício da dúvida produz maus anúncios, pode, em contrapartida, gerar melhores escritores.

(Mário de Carvalho, em Quem disser o contrário é porque tem razão)

Achegou-se pitando um cigarro com cheiro de menta. Disseram-lhe que estava na moda; e ele sempre se deixava levar pelos modismos, quer literários ou não.

Pediu licença e se abancou. A sala recendia a silêncio; evitávamos discutir a politicalha que infestava todos os ambientes, por receio de perdermos o cantinho de paz que era, para nós, aquela pequena cafeteria. Numa espécie de acordo tácito entre os poucos frequentadores. Final da tarde, um quente finalzinho de tarde.

O café era servido pelo Rafael Arcanjo, dono do estabelecimento. Ele, ao tempo em que nos servia, vigiava-nos pelo canto dos olhos, fazendo careta com o discreto mover dos lábios, subindo e descendo a comissura dos lábios.

Quinta-feira, a semana caminhava para o seu desfecho. De repente, o Rafael resolve ligar a tevê. Pronto, lá se foi a nossa paz! O repórter-apresentador (numa mistura de juiz, carrasco e filósofo) começou a vomitar sentenças sem direito ao contraditório, a exarar penas capitais e a propalar seus dogmas assassinos; num tom de voz rascante; à proporção em que ele arranhava os tímpanos, de roldão assassinava a Última Flor do Lácio. Imaginei Camões e Graciliano Ramos a se revolverem em seus túmulos.

O recém-chegado fez coro ao apresentador. “Se eu fosse presidente desta nação, eu…”. Prefiro não transcrever aqui, neste arremedo de crônica, o que tivemos que ouvir, enquanto sorvíamos, cá no nosso canto, a fervente rubiácea.

Resolvi calar. O desprezo conteria a essência da minha resposta. Porém, caro leitor, nem todos têm estômago fundo nem bons bofes para tanta asneira e vitupério. Um dos presentes, confesso que o mais tímido de nós, pediu-lhe um aparte. Levantou a mão e jogou uma “sentença” no colo daquele homem tão prenhe de certezas:

— Se a justiça é sujeita a falhas, como fazer se, depois de degolado o suposto facínora, descobrirmos que houve erro processual. Para ser mais claro: que o assassino era outro?

Silêncio de sepulcros caiados.

— A ciência já desenvolveu uma cola capaz de colar pescoço decapitado? — completou, num misto de mofa, gozo e ironia.

Naquele instante, o riso espocou frouxo e estridente.

O escrevinhador de província ficou vermelho, o pescoço intumescia; sem falar nas veias da face a aumentarem o calibre.

— Eu… — a palavras não lhe acudiram.

— Assim como na literatura, caro senhor, que deve ser o palco do seu ofício, a certeza mata a semente do aprendizado da vida. Sempre desconfio daqueles intelectuais que não praticam o exercício da dúvida.

Pagou a conta e saiu. Ao passar frente ao escrevinhador, colocou a mão no ombro dele, confidenciando-lhe algo que nós, os outros presentes, não conseguimos ouvir. Rafael Arcanjo, por detrás do balcão, esticava as orelhas, contudo nada acudiu ao seu mister de curioso resenhista da tarde.

Cabisbaixo, eu tomei um gole da água com gás e, em seguida, o meu café; este, já frio. Paguei a despesa, minha e do escrevinhador, e tomei o rumo de casa. Prometendo, a mim mesmo, antes de dormir, exercitar-me no campo das dúvidas.

Se não der resultado, ou se produzir tão somente maus anúncios, que pelo menos faça gerar em mim, como contrapartida, um melhor escritor.

 

Clauder Arcanjo

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