Clauder Arcanjo – Despeito

Clauder Arcanjo – Despeito

Éramos jovens, e estávamos intoxicados pela literatura. O mundo literário nos animava e nos consumia, com uma volúpia e uma força incomuns. Passávamos horas e horas, sem nos darmos conta disso, lendo e relendo os grandes autores; varávamos os finais de semana discutindo formas e artifícios que os canônicos incrustavam dentro das suas obras.

Cada livro lido era discutido à exaustão, como siderados pela arte e engenho dos clássicos. Sem falar que teimávamos em avançar nos autores, festejados por nós, no original. Metemo-nos a estudar inglês, espanhol, francês e italiano. Com uma infantilidade que só a juventude justificava. Até o alemão, com suas palavras enormes, era objeto de nossa curiosidade, dado a paixão por Goethe e Kafka.

Com o tempo, ficamos nós dois: Cassiano e eu. Os outros debandaram, foram atraídos pelos compromissos com o futuro. A medicina operou a saída de Matias Sineiro; a advocacia divorciou-nos de André Bragança; o comércio barganhou a saída, sem deveres e haveres, de Sandra Bernadete.

Isto, contudo, não nos suprimiu o empenho. Ao contrário, o que antes se dava em grupo, numa confraria de jovens, agora, resumia-se ao contato entre apenas nós dois. O que significou mergulhos mais arrojados nas profundezas de Shakespeare e companhia. Quando íamos dormir, um observava se o outro realmente não fingia para, pouco depois, voltar às páginas de Cervantes, Proust ou de Machado.

Uma certa tarde, ficamos sabendo da transferência, para nossa cidade, de um escritor de renome da capital. Ele sofrera de um problema de saúde grave, e os médicos exigiram-lhe, como forma de ganhar mais anos de vida, a imersão em uma vida mais provinciana e quieta; o jornalismo havia lhe roubado a saúde e, como presente macabro, imprimira-lhe três pontes de safena no coração. O que fora alvo de manchete do caderno Saúde do indigitado periódico.

Procuramos o escritor num final de manhã, chegamos a ele via um amigo em comum, tio de Cassiano. De início, recebeu-nos com repúdio e um quê de asco. Contudo, com o retorno das visitas e o papo frequente na calçada, o famoso escriba deu-nos atenção ao perceber em nós um cadinho do que levava em si quando mais novo.

Livros e autores desconhecidos nos foram apresentados por ele, e discussões acaloradas davam-se em torno de recursos e licenças poéticas. Sem falar no palrear acerca da vida literária na capital, essas adoçavam o café amargo que nos era servido por sua esposa Mafalda. Como seu marido não podia ingerir açúcar, ela servia nossas xícaras sem o menor doce.

Meses depois, convocou-nos para uma oficina literária. Daria um tema, e nós dois, Cassiano e eu, teríamos que conceber algo sobre o mesmo. Tempo e espaço seriam estipulados por ele, mestre. Qualquer menor suspeita de plágio seria motivo para um afastamento temporário do nosso convívio. Aceitamos, brindando com mais dois goles de café frio e sem gosto.

Na primeira semana, ele nos pediu a releitura de um conto de Machado de Assis, “O enfermeiro”.

Na segunda, ordenou-nos um mergulho nos Sermões, de Vieira.

Na terceira, a Antologia Poética, de Drummond.

Confesso que estava impaciente para pôr a mão na massa, e conceber a minha primeira página sob os auspícios da tal oficina. Ele nem batia a pestana por nós. Certa noite, quando já nos preparávamos para sair, deixando ele se recolher para o jantar, o professor surpreendeu-nos:

— Peguem papel, uma folha de papel almaço, e uma caneta. Escrevam sobre “O Nada”.

Entreolhamo-nos.

— Façam isto em cinquenta linhas e em não mais do que uma hora. Vamos, rapazes, o tempo está correndo.

Parados estávamos, inertes continuamos. Ele, então, levantou-se com dificuldade da cadeira de balanço onde se encontrava, e dispôs à nossa frente uma folha e uma caneta esferográfica de tinta preta.

Olhou para o relógio, cofiou o bigode ralo e sentou-se, impassível.

Baixamos a cabeça, a folha em branco à nossa frente.

Quando senti que Cassiano pegara do papel e da caneta, repeti o mesmo gesto. O “Nada”… coloquei no topo da folha; por hábito de escola, logo em seguida, o meu nome, em letra cursiva.

O primeiro parágrafo… Nada me ocorria. Contudo, quando percebi que a esferográfica rangia forte ao meu lado, puxei pela mente turva e espremi-a com força. As palavras foram saindo lenta e dificilmente, num emaranhado que eu não saberia dizer se no campo da filosofia ou da literatura. Decidi deixar-me levar pelo rio da prosa, e escrevi, cabisbaixo, até o mestre decretar: “Fim”. Pus, ainda, umas reticências tímidas no final, e larguei papel e caneta. Ele recolheu as folhas, dizendo-nos:

— Vejo vocês amanhã no horário costumeiro. De hoje para amanhã, antes de dormir, releiam algumas passagens de Otelo, de Shakespeare. Na tradução de Bárbara Heliodora. Dei um exemplar a cada um de vocês, ainda estão lembrados?

Quando me virei em direção a Cassiano, senti-lhe os olhos reluzentes; na sua face, como se um ar de quem se encontrava perdido, náufrago longe de tudo. Saímos para a rua. No céu estrelado, uma lua capciosa a instigar-nos à condição de amantes da Poesia. Uma quadra de Quintana ocorreu-me; no entanto, aquela madrugada de vento frio e a companhia quieta e cabisbaixa de Cassiano calaram-me a poética.

Despedimo-nos na praça, e cada um de nós tomou o caminho de casa. Lá, tomei um banho rápido, servi-me de um copo de leite quente, bem adoçado, recolhendo-me cedo. Antes de dormir, lembrei-me do exercício e chamei o sono sob os auspícios da intriga de Iago contra Desdêmona.

Dia seguinte, final de tarde. Pela primeira vez não seguimos juntos para a residência do mestre. Chegamos quase ao mesmo tempo, por caminhos diferentes. Mafalda serviu-nos um cafezinho, confesso que quase não levei os lábios à xícara. Um nó na garganta dificultava-me a deglutição daquela amarga rubiácea.

O silêncio estava entre nós, como uma presença física e austera. Sem maiores delongas, o professor sacou os dois textos, pedindo-me para ler o do Cassiano.

— Após, o Cassiano lerá o seu. Comece, então.

Ajustei os meus óculos de aro de tartaruga e, antes de iniciar, corri a vista pela página, por completo.

Ao ler a sentença de abertura, a fala me faltou. O corpo tremia todo como se estivesse tomado por uma febre terçã. A vista escureceu-me, a face foi invadida por um calor abrasador, a respiração ofegante, os olhos como se injetados…

Cassiano, com a face baixa. O mestre, impávido, como se nem se desse conta do meu estado de torpor.

Levantei-me, as pernas a me faltarem, trêmulas, bambas. Soltei a folha sobre o colo do Cassiano e rumei para a porta grande que dava para a rua.

No céu, um ocaso que ninguém, nem nada, saberia explicar. Por mero despeito, é claro.