Clauder Arcanjo – CONTINHOS DE SETEMBRO

O outro inferno

A paz da noite alta, o silêncio dos galos e o vento fresco não o iludiam.

Chegou-se, pôs o pé direito na soleira do alpendre e… aguardou.

Atrás de si, cangote da memória, um legado de medos e temores: a saída de casa ainda jovem, as palavras duras com o pai, “Inferno!”, a cabeça empinada no rumo do novo… Tanta coisa; na ocasião, poucos receios. Dez anos atrás.

Colocou o pé esquerdo na soleira, endireitou a cabeça, como se buscasse, no porte, uma altivez que nunca tivera. Pigarreou baixo e ninguém deu por ele.

De repente, o barulho do mijo intermitente no urinol. Com pouco, o pigarro do velho.

Dobrou as pernas, ajoelhou e chorou. Em seguida, deu meia-volta, na certeza de evitar o outro inferno.

***

Vazio

Como a própria definição o diz, o vazio é um lugar onde não existe nada, mas no interior do qual se espera que venha a acontecer tudo.

(Lídia Jorge, em O organista)

A porta se abriu.

Nos olhos dela, o vazio. Em sua boca, o vazio. No colo dela, as mãos cruzadas, a ofertar-lhe o vazio.

Aproximou-se, beijou-lhe a face fria e pressentiu, cansado, que havia um perfume de esperança a escapar-lhe pelos cabelos lisos.

Guardou, então, os seus pertences, pôs a mesa e a esperou.

Com pouco, ela entrou no interior da sala e pôs-se a dedilhar, oscilante, o velho órgão. Uma tocata e fuga. Em ré menor.

A porta se fechou.

Clauder Arcanjo

[email protected]