Clauder Arcanjo: Colóquio silente a três vozes

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Procuro a igreja dos desesperados,

mas não sei as preces necessárias.

No entanto,

salva-me o silêncio

porque nada mais tenho a dizer.

Dizer o quê? Se ainda persiste, na porta desta igreja, Álvaro, o vazio silente de outrora. Dois bêbados ressacados, três damas corcundas e um vate a clamar, com palavras ocas, por um Deus abnegado, mesmo sem saber rezar a prece digna de um excomungado. 

Renasço para o enigma

da constante pulsação do mundo

transformada em dádiva.

Dádiva que quanto mais a recebo, Regalo, mais devo. Que quanto mais a desejo, mais nela não creio. Dádiva que me põe em degredo, na terra maldita dos poetas proscritos. Insisto em meu óbolo, mas o inferno está cheio e não nos espera. Ainda. 

A poesia foi me enlouquecendo aos poucos,

quando pensei em reagir

não dava mais tempo.

Não dava mais tempo, poeta Álvaro, porque a poesia é nosso arcabouço. Ela nos entra, argila, constrói, desatina, amortece, assassina… Enfim, põe-nos ao chão, ao tempo em que nos sublima. Não se reage ao seu canto de sereia, estro de estrela e má sina. 

Ainda faltam eras

para encontrar a resposta

que me fará achar

futura a profecia

lentamente sussurrada

na concha com que te ouço.

Na concha com que te ouço, Leocádia, há um regalo de trovas líricas. Enquanto, lá fora, capto um arremedo de sobrosso dentro de duas estrofes proféticas, a anunciar-nos a vinda de um porvir em alvoroço. Porvir de uma era desregrada em que imperarão o ócio e o barulho, tempo a me desesperar com o império do grito como resposta, bem como a tirania do ódio a todos imposto. 

A poesia é só o instante do momento,

esse momento do instante

que se perde

num lamento… 

Num lamento em que me esvaio por inteiro, poeta Álvaro, em que os versos revelam o reverso de mim, dentro de um espelho torto em que me vejo partido ao meio: metade da metade de mim, dentro da metade do meio de um instante outro. 

Nada mais tenho a fazer por aqui

enquanto a poesia não chegar

com a inteira permissão dos deuses vigilantes

atentos à viagem vivida

em lapsos de pura eternidade. 

Pura eternidade, eu sei, que se esvai no fumo deste enquanto. Enquanto tu pensas em partir, Leocádia Regalo, ouço a poesia a nos chamar, a nos convocar, pedido dos deuses, para uma nova e difícil viagem. Viagem vívida esta que se iniciará nos rastros parcos da espinhosa imortalidade. 

Mas sei ainda sentir o mundo

que guardo no meu espanto

que trago grudado na pele

como uma costura irreversível.

Uma costura irreversível que, pela mão ossuda do Destino, ao desfiar a dor do mundo, decifrará o espanto que nos oprime a pele cosida. Com o tempo, eis que surgirá a seda que enternece o sono nosso, Álvaro. E, quanto mais o sonhar nos transpuser para uma terra distante, perceberemos que a semente antiga lá só rebrotará se a enfiarmos no solo árido com sangue, fé, suor e dor. 

O silêncio que me envolve

é por vezes atingido

por um rumor longínquo

que se instala junto ao peito

definitivo e obsessivo. 

Definitivo e obsessivo, eu mergulho no silêncio de um torpor longínquo, Leocádia, em que o único regalo que por vezes tenho direito é uma chaga viva que cativo dentro do peito. Chaga que me dilacera carne e espírito, quando os versos não revelam (nem atingem) o que se passa em mim. 

Das coisas todas

que vivi,

só lembro

as que esqueci.

As que esqueci, coisas de suprema lembrança, foram vividas em noites insones. Nelas, não dormia, Álvaro Alves de Faria, não descansava, não sonhava… enquanto as reminiscências cavavam seu fosso profundo do esquecimento no valão da madrugada fria. 

Mas o sopro da aventura

insuflou de sonhos o voo rasante

até se infundir em mim

um doce rasgo de confiança e prece.

Confiança e prece, Leocádia Regalo, qual vento de remissão soprado sobre a desventura dos meus dias, a insuflar uma vela solitária no barco do meu degredo. E eu, marinheiro de um rio seco, a sonhar com a odisseia de um Hades qualquer. 

Essa leveza que leve leva e lava o poema

da aridez que corta a palavra

que a poesia esconde no seu universo,

esse aberto ferimento

na sílaba de uma faca de silêncios. 

Na sílaba de uma faca de silêncios, eis que tudo se faz verbo aberto neste momento. Verbo intenso e pesado como a potência de uma pluma que, quanto mais leve leva e lava o tempo, mais a palavra se apresenta em poético deslumbramento. A minha poesia é aridez, leveza e silêncio, Álvaro. 

Como se recordar fosse

o caminho certo

para a memória sossegar

a dor do que perdemos.

A dor do que perdemos, poetisa Leocádia, é demais para tão curto caminho. Precisaríamos, suspeito eu, da eternidade do infinito para sossegarmos certas memórias, baú com tantas ossadas do que foi, outrora, apenas meros sonhos meus. 

Hoje tarda a tarde

no bolso de meus anoiteceres,

onde guardo as pedras

que me cobrem os pés

e os rumos que gostaria de descobrir.

Gostaria de descobrir o sopro de uma nova tarde, tarde que não tardasse a encher nossos bolsos, Álvaro e Leocádia, com uma primavera de luares utópicos, a nos cobrir os pés lacerados de rumos, rosas e prumos, a fim de sermos humanos, apesar dos seguidos (e muitas vezes imerecidos) anoiteceres. 

Devagar entro

na noite do poema.

Por ora, salva-me o silêncio/ porque nada mais tenho a dizer. 

 

Nota: versos extraídos da obra A duas vozes – A dos voces, de Álvaro Alves de Faria y Leocádia Regalo (Salamanca: Trilce Ediciones, 2018).

Clauder

Clauder Arcanjo

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