Cem anos do mestre e amigo Veríssimo de Melo

Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista

O saudoso amigo e mestre Veríssimo de Melo, agora centenário, que na intimidade da amizade era chamado de ‘Vivi’, nasceu em Natal, no dia 9 de julho de 1921 e veio a se encantar no dia 18 de agosto de 1996, mês dedicado mundialmente ao folclore. Foi meu paciente mestre nos estudos do folclore e grande amigo. Sua grande paixão em vida foi alicerçada nas lições cascudianas, tendo o privilégio de recebê-las em vida, sendo o primeiro discípulo dileto do mestre da Junqueira Aires, Câmara Cascudo.

O irrequieto Veríssimo, como folclorista, viajou quase todo o mundo, tanto pesquisando, quanto participando de Seminários e Congressos como representante do RN. O mesmo foi presidente da nossa Comissão Norte-rio-grandense de Folclore por décadas, até repassar para outro amigo e também um de meus mestres, Deífilo Gurgel.

Eu, ainda bem jovem, resolvi pesquisar por curiosidade e teimosia sobre o vasto mundo da cultura popular nordestina. Então, bati três portas sagradas e, como dizia minha mãe, dona Estela, fui recebido como um parente dessas casas visitadas: “Meu filho, faça tudo para merecer voltar aonde você for!”. Explico-os: no casarão de Câmara Cascudo, eu ia a convite da saudosa amiga Anna Maria Cascudo Barreto. Via o sábio mestre um pouco de perto, mas não o incomodava, devido ao seu problema com a surdez. Meu atrevimento não ia tão longe. Ali tomava café com tapiocas e conversava com sua esposa, dona Dhalia, nos finais de tarde. Ana abriu-me as portas e passou-me a chamar com exclusividade de ‘Guto’ até a sua partida em 15 de janeiro de 2015. Foi fiel amiga e por que não dizer, uma irmã querida de minha vida…

Poucos anos depois eu ia os sábados, pela parte da tarde, visitar a casa do mestre e amigo, Gumercindo Saraiva. Verdadeiras aulas com muitas conversas e vinhos. Levava nas ocasiões, um caderno grosso para anotar as dicas bibliográficas e transcrever o que lá eu lendo em alguns livros. Dona ‘Guilhermini’, como eu a chamava, de vez em quando, interrompia nossas prosas, trazendo em especial bandeja de prata, café, água ou vinho tinto seco da melhor qualidade. Às vezes, o folclorista e músico tocava seu bem guardado violino para um jovem visitante, que nunca tocou nem sino da igreja de São Pedro, no meu Alecrim. Coincidentemente, o velho folclorista, partiu tocando violino, em 22 de maio de 1988, dois anos depois de Câmara Cascudo.

E a terceira porta que me foi escancarada, foi a do saudoso mestre e amigo ‘Veríssimo de Melo’. Esse, gentilmente liberou-me todas as suas manhãs, de segunda à sexta para receber-me na sede da Academia de Letras. Dizia-me rindo entre incontáveis cigarros e cafés: “Pode vir aqui, meu jovem, no meu escritório quando quiser, será um prazer ensinar-lhe o que aprendi com outros que me ensinaram, como Câmara Cascudo”. Com muita paciência, ia me pedindo para anotar no meu velho caderno, as principais obras sobre o folclore brasileiro e seus autores. E haja conselhos: “Não escreva nada sem antes consultar Cascudo e Mário de Andrade!”. Mais ao longo da amizade: “Quando tiver uma boa ideia fique em segredo até publicá-la. Não durma no ponto, pesquise e não se preocupe com a quantidade de páginas. Não demore muito no tema, que vem outro mais esperto e escreve antes de você…”.

Viu logo que diante de minha dificuldade financeira em adquirir livros raros e caros em sebos, e de pronto disse-me em menos de um mês: “Vou te emprestar um livro de cada vez, pois quem leva dois ou três não volta para devolvê-los ao dono. Quando me devolver este agora na próxima semana, leva outro de minha biblioteca”.

Um dia, deu-me de presente uma caixa de papelão, recheada de folhetos de cordéis sobre Tancredo Neves e o Papa João Paulo II. Eram folhetos que foram pesquisados em seus livros, sobre o político mineiro que chegara a presidência e a visita do então Papa ao Brasil. Deu-me a caixa e a seguinte orientação profética: “Existe muita coisa ainda a ser pesquisada na Literatura de Cordel sobre o Rio Grande do Norte. Vá em frente, não se preocupe com os desocupados e invejosos. Por eles, eu não terei feito nada!”. Quando lhe mostrei o meu trabalho sobre o Santo de Natal, Padre João Maria na Literatura de Cordel, muito contente, o levou para casa e prometeu-me entregar com a sua apresentação: “Interessante que, até agora, ninguém se deu ao trabalho de juntar os folhetos que existem sobre o nosso santo!”. E antes da entrega prometida, o mesmo viajou de vez dessa terra…

Às vezes, quando o livro trazido de sua biblioteca era pouco volumoso, eu o lia ali mesmo em silêncio numa grande mesa no Conselho Estadual de Cultura, paginando-o, anotando e só sendo interrompido quando o mestre Vivi se aproximava com o convite: “Vamos dar uma paradinha, meu jovem, para uma água e um cafezinho”. Perdi a conta dos dias e dos livros, mas estão na memória seus conselhos e, principalmente, suas histórias sobre Cascudo, Zé Areia, Luís Tavares, Newton Navarro, Albimar Marinho, Roberto Freire, Cancão, entre outros intelectuais, boêmios e quixotescos personagens de seu convívio natalense. Cada história era acompanhada da inevitável risada, a qual chamava a atenção até da secretária da Academia, que não as ouvia, mas percebia nós dois caindo em gargalhadas: Pesquise sobre os tipos populares, os de rua, os esquecidos, os que ninguém quer mostra-los em suas obras. São as riquezas humanas das cidades que foram vistas por um João do Rio e Mário de Andrade, entre poucos!”.

O mestre Vivi sempre dizia-me que, aquele clima descontraído em ‘seu’ escritório, sua esposa não aprovaria em seu apartamento, por isso os nossos encontros teriam que ser sempre no térreo da casa de letras de Manoel Rodrigues de Melo. Quando chegava alguém amigo, o mesmo ia atender em sua mesa de presidente do Conselho de Cultura, mas quando se tratava de um daqueles tipos chatos, ele se sai com esta: “Venha outro dia. Me desculpe que eu no momento estou ocupado com este jovem que veio aqui pesquisar sobre folclore”. Na saída do tal indesejado, haja risadas e cafés para comemorarmos a divina despedida, sem vassoura atrás da porta: “Você, lá na frente, se não se isolar das visitas, pedidos e telefonemas, não vai conseguir escrever nada, viu!”. Hoje o entendo muito bem…

 

O mestre foi professor universitário de etnografia e antropologia da UFRN, escritor, jornalista, compositor, pesquisador, conferencista e folclorista. Além de boêmio e tocador de violão, me dizia rindo que as últimas tinham sido duas profissões boas do seu passado… e confirmava a honraria de ter sido até guia do conhecido cego Raimundo Bamba: “Vá atrás de Raimundo e escreva sobre ele. É um dos que estão aí esquecidos…”. Nem precisa dizer aqui que segui muito de seus ensinamentos e conselhos. Ele, um sábio professor com idade de meu pai e eu, um jovem pobre aprendiz, com idade de um de seus três filhos…

Em nenhuma universidade, eu teria um educador da seriedade e saber de um Veríssimo de Melo. Atendi fielmente aos pedidos de dona Estela: “Meu filho, procure boas amizades. Árvores que possam lhe oferecer sombra!”.

Tempos depois, o via sempre abrindo sua caixa postal no Correio da rua Princesa Isabel, no qual, por coincidência, também tinha uma. Ao me ver retirar uma cartinha, o mestre carregado de cartas e livros vindos do mundo todo, para consolar-me, dizia rindo: “Calma, vai chegar o seu tempo. Um dia, você não vai ter tempo para responder as cartas e pedidos que lhe chegarão!”. Foi, naquela agência dos Correios, o nosso último encontro e bate papo. Na ocasião, um pouco calado e se queixando que ia se submeter a uns exames: “Talvez até botem a culpa no uísque e não no leite, viu!”. E contou-me novamente, em nossa ‘despedida’, a história de Zé Areia, seu biografado e anjinho que só tomava leite…

Faltando apenas quatro dias para o dia do folclore de 1996, o mestre Vivi partia tão rápido de sua Natal. Se foi com seu coração tão grande e generoso de um professor, com passo sempre ligeiro de quem era magro para as terras de São Saruê, onde as barrancas são de cuscuz e o rio é de leite puro. Terra de verdadeira amizade, bate papo, caju, cachaça… tudo puro e santo, sem os corantes e conservantes artificiais do século XXI…

E uma grande coincidência ocorreu-nos depois de alguns anos de seu encantamento. Minha filha Elaynne, formada em Letras na UFRN, passa no concurso para professores da rede municipal de ensino de Natal e começa a trabalhar justamente na ‘Escola Municipal Veríssimo de Melo’, no bairro de Felipe Camarão. A citada professora, a qual não teve o privilégio de ser amiga do mestre patrono de sua escola como o seu pai, que além de amigo, foi também aluno da chamada Universidade espontânea do saber ‘verissiminiano’, me pede uma fotografia e livros do mestre Vivi para o acervo da sua recém escola. Na hora veio-me um impulso do coração para ligar para Diógenes da Cunha Lima, grande amigo de Vivi, e pedir-lhe ajuda nesta ‘intriga do bem’. Esse atende-me de pronto, dizendo-me não se tratar de coincidência nenhuma, mas sim de um pedido do próprio Vivi aos amigos: “Já que ele quer que as crianças o conheça, vamos colocar sua foto em destaque na escola que o homenageia!”.

Marcamos o dia e, em uma manhã de sol e pátio cheio de crianças estudantes, chegamos lá. Eu, Diógenes e Severino Vicente, com uma grande moldura do mestre Vivi, doada pelo advogado e presidente da Academia de Letras do RN. Coincidências que só os espiritualistas explicariam, não eu…

Aqui está embora longo, um pouco do meu vivido em uma amizade, da qual me restou a gratidão, muito bem repassada aos filhos – Fernando, Sílvio e Monique! Minha eterna gratidão até aos netos nesse centenário de seu nascimento. Meu mestre Vivi, sei que isto tudo é muito pouco, pois você merece muito mais!

Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN, 09/07/2021.

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