Cantiga de vazio e esperança – Clauder Arcanjo

São 4 e meia da madrugada. 18 de abril de 2017 lentamente surge no horizonte. Tenho compromisso com a minha crônica semanal; ou seria com o meu leitor dominical?

Não sei. Ou melhor, para evitar digressões tolas, fiquemos com os dois. O editor, pois certo que me cobrará uma página ao certo. E o leitor, pois casual, este abrirá, displicente e exigente, a página dominical em busca deste cronista casual.

Nada me surge na tela branca do computador companheiro. Antes, era a folha em branco o calvário do escrevinhador; hoje, o branco traz a marca dos bytes, todavia o sofrimento é tal e qual.

Sem nada em que pensar, como também muito pouco acerca do que escrever-discorrer, preparo um café. Sorvo o moca com lentidão e vazio. Sobre a escrivaninha o livro Escritos ao Sol, do mestre Adriano Espínola.

Sento à cadeira de balanço e, enquanto tomo o meu cafezinho, leio e releio os versos de “Atento”:

 

Todos os dias,

batalho silenciosamente.

 

Ao respirar, busco ser o vento.

Ao caminhar, sou o caminho.

Ao sonhar, engendro o sonho do sonho,

delirante e consciente.

Ao pensar, penso o pensamento

e devagar o componho.

Ao realizá-lo, sou a realidade,

simplesmente.

 

Não há outra verdade

senão a que invento.

 

Inventarei eu, então, a crônica de hoje? Mas, para começar, o que seria invenção e o que seria realidade?

Esta cadeira nesta sala, com os seus “fantasmas de mobília” (fazendo uso de um verso de Marcos Ferreira), seria a realidade posta na manhã vazia? Ou tudo não passaria apenas de uma cantiga vazia, de uma vida vazia, em uma realidade sequer imaginada?

Os pássaros, lá fora, sem darem bola para a minha prisão de ventre literária (que, de quando em vez, aflige-me), nem muito menos darem cabimento a tais filosofices de botequim (apesar de não beber, sempre me vejo, em intermináveis elucubrações, em uma mesa de bar), anunciam a esperança do óbvio: um novo dia nasce. E isto, por si só, nos bastaria.

Se eu, como cronista, não saberia transmudar o vazio da madrugada numa cantiga de esperança… a falta é minha, e de ninguém mais.

Pensa em fechar esta página, caro leitor, e procurar coisa que melhor o valha?!…

Sem problema, fique à vontade. Também, quero deixar claro aqui: isto, hoje, pouco me importa.

Chega! Memórias do subsolo me aguarda, estou a reler esse clássico da literatura mundial.

No entanto, antes de me sentar, para mergulhar, pro-fun-da-men-te, no mundo singular do autor de Crime e castigo, não sei por qual razão, Augusto dos Anjos me surge; e eu me flagrei a recitar “Versos íntimos”, na varanda do meu apartamento, contrapondo a minha tosca voz à sinfonia matutina dos pardais:

 

Vês?! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão — esta pantera —

Foi tua companheira inseparável!

 

Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.

 

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.

 

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!

 

— O que eu quero dizer com isso?! Nada, nada! O dia já raiou. Tenho dito!

 

Clauder Arcanjo. Contato: [email protected]