As obras de arte na residência de D. Lourdinha

Por Márcio de Lima Dantas - Professor do Departamento de Letras da UFRN

Para Clarisse

 

Maria Lourdes Bernadeth da Escóssia Rosado (17.04.1927), viúva de Jerônimo Vingt Rosado Maia (13.01.1918 – 02.02.1995), casou-se aos dezesseis anos,ele sendo dez anos mais velho que ela. Embora alquebrada pelo tempo, permanece presa às cerimônias de outrora, que diziam receber as visitas com vestimentas dignas e com agrados, fazendo imprimir no interlocutor que a educação nunca vai cair de moda. Pouco importa a insolência e a ausência de modos que reinam sobre nosso tempo.

Ainda bastante lúcida, sabe a origem de cada objeto, preso a fatos ou eventos de sua longa trajetória. Sente prazer em conversar com um estranho, não necessitando de máscara ou fazer gênero. Sua autenticidade é fina estampa no tom da voz um pouco hesitante e nos longos dedos que acompanham as palavras, numa harmoniosa sintonia, gerando um conjunto no qual não há como não desenvolver empatia face a uma pedra preciosa, de bem cuidado lavor, lapidada.

 

 

Ora, é uma mulher que vem de um tempo distante. É uma mulher antiga. A aristocracia a qual integrou não lhe retirou o risco escuro do lápis da simplicidade. Coisa rara. Sua irmã, Escossilda, não fica atrás: derrama-se em sorrisos das alvíssaras que é uma visita numa tarde plena de sol e brisa.

Mas eu queria dizer uma coisa sobre o fenômeno de colecionar objetos de arte. Sabemos que não vamos levá-los conosco. Caixão não tem bolso. Por que então perdemos tempo em colecionar adornos, pinturas, fotografias antigas? Creio que há duas questões. A primeira diz respeito à Memória, pois alguns indivíduos se sentem compelidos a resguardar o passado, como forma, talvez, de este não ser destruído pela fúria tão passageira do tempo. Assim como se fosse imprimir mais contorno ao que se é como pessoa, com seus gostos, com suas idiossincrasias, enfim, como uma personalidade que a distingue de outra (não falo de valores: superior/inferior). De outra parte, certas pessoas comprazem-se na companhia dos seus mortos. Sabemos que, em certas noites, assomam as sombras dos antepassados.

Uma segunda questão, que corrobora a primeira, compete a um querer se fazer arrodear por coisas com valor sentimental e de uma história singular: nossa experiência no mundo. Sabemos que todos somos mortais, isso é fato. Mas enquanto não chega nossa hora, então que possamos extrair o máximo de prazer possibilitado pelo que se encontra em nosso entorno e alcance. Com quem ficarão as peças? Isso não mais compete ao morto. O morto nem sabe que morreu! O importante é saber que da ganga existencial, onde pouca coisa faz sentido, eu ousei extrair o ouro e a prata simbólicos para iluminar meus tépidos dias e minhas friorentas noites. Ah, também preenchi certos momentos de solidão e infortúnio. Por ventura, há coisa melhor que colocar sal na sensaboria do existir?

 

 

Muitos museus contemporâneos expõem verdadeiros tesouros, que são o resultado de um gosto requintado por obras de artes que estavam distribuídas em suas residências. Não foi em vão, pois, após sua morte, fez-se público o que era privado. Só um exemplo, o Museu do Louvre, Paris, detém salas dissonantes do foco do seu acervo de artes plásticas, que segundo a lógica dos museus franceses, cobre os primórdios da pintura em França até 1822, competindo a outros museus continuar a linha cronológica do estilo histórico sucessor dessa data. Porém, alguns benfeitores só doariam a coleção integral se fossem expostas no Palácio do Louvre. Então não se espante de encontrar um Picasso numa sala. Leia a explicação em banners expostos logo na entrada.

Podemos passar à coleção? Se a coleção é à parte? Não, de jeito nenhum, integra os objetos que decoram e dão beleza e esplendor aos cômodos.

Há uma enorme cristaleira com um elenco de pequenas imagens. Algumas mais bem elaboradas, de tradição ibérica, e outras de fatura mais popular, vincadamente associadas à imaginária da religiosidade do povo mais humilde que floresceu no Nordeste. Essa imaginária é bastante curiosa no que tange a uma certa rusticidade da sua elaboração, haja vista serem toscas e não buscarem valor estético. O que estava em evidência era a fé. O santo é nominado pelos atributos que comportam, não pela capacidade do rústico artesão em inscrever na madeira o panejamento e a expressão facial. A diversidade é enorme, creio que são quatro prateleiras com santos representativos da Igreja Católica.

 

 

Enfim, toda uma sorte de preciosas obras de arte recobre o espaço da casa, desde cinco vasos de prata de notável lavor, cristais que testemunharam as bodas do casal e uma belíssima coleção de bules de porcelana, além de um autêntico cuzquenho.

Finalizamos a visita quando fez questão de mostrar suas tapeçarias, desenhos geométricos em cores fortes, lembrando o geometrismo da arte árabe. Sua maneira de preencher os já compridos dias, inerente ao idoso que ainda sente o sabor de constatar que está vivo, sentindo-se capaz de conjugar o verbo “querer bem”.

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