A volta do velho boêmio…

Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista

 

Sempre retorno aos lugares quando sou muito bem tratado. Teve café, tapioca, tamborete, balanço de rede e conversas em calçadas, eu dou meu jeito de voltar. Gosto de saltear os lugares. De Igreja a bares. Contrato de voltar só mesmo pra minha casa, porque é o jeito. Acho que tenho algum sangue de cigano, como me diziam. Sou estradeiro, adoro viajar e conhecer novidades e culturas diferentes das feiras e mercados. Quando tenho alguma raiva do ambiente visitado, não tem jeito, nem a pedido do Papa eu volto! Não piso na calçada de certos pontos, há décadas. Dobro a esquina ou mudo de direção, dos tais. Estão até perdoados, mas não volto a pisar o chão que juro não retornar. Sacudo a poeira de minhas sandálias pra sempre, como foi ensinado aos primeiros cristãos, quando eram mal tratados.

Também não voltei aos namoros acabados por mim. Até voltaram a ser amigas, mas o lado sério não voltou jamais. O leite derramou e não voltei ao curral… Puxei a meu velho pai, Geraldo Costa, o qual um dia disse que, se tivesse deixado minha mãe, jamais teria voltado. Papai chamava a volta dos amores, ferozmente, de ‘cachorrada’. Ele era do tempo que não comprava vela pra defunto em bodega que não o tinha agradado: “Vai remando mesmo, sem vela cristã, mas o bodegueiro não vai ver minha cara na venda dele!”. Voltar, nunca foi coisa fácil, pelo menos para mim!

Me aposentei e não voltei ao local de trabalho. Mudei-me de poucas residências, mas não voltei a elas, nem para visitas. Arrumo a mala para partir e nunca para voltar. Estou acostumado a ser chamado de ‘ranzinza’ e ‘radical’ mesmo, quase todas as horas. Não nasci com a paciência de budista e nem com dinheiro de milionário. Tem gente que volta facilmente ao seu ex amor. Conheço um caso de um amigo que brigou até em delegacia, divorciou-se e voltou pra casar com a antiga esposa, a qual só não chamava de ‘carne seca podre de feira’. E andavam como jovens namorados apaixonados…

Outros são expulsos de lugares e voltam sorrindo ao primeiro convite, como se nada tivesse acontecido. No meu caso, nem o pagamento de uma mega sena acumulada, eu iria receber em certos lugares, que estão bem anotados em minha velha caderneta de papel. Não vou citá-los. São poucos e, os mais chegados, já os sabem.

Querendo atenuar os que retornam, o político e escritor paraibano José Américo de Almeida dissera que: “Ninguém se perde no caminho da volta!”. Alguns dizem ‘retornando ao batente’. Outros usam o exemplo bíblico que diz que ‘o filho sempre retorna a casa do pai’. Não nasci pra ser chamado de ‘mau caráter’ e nem ‘cara de pau’…

Passei uns meses sem escrever. Aposentado tirando férias é até engraçado, principalmente depois que o sociólogo FHC nos chamou de ‘vagabundos’. E o tal, segundo ele mesmo, trabalhou demais pelo nosso país. Só ele e mais ninguém, depois do velho Cabral. No meu caso, eu pedi um tempo ao meu paciente editor para me afastar das besteiras escritas aos domingos, no intuito de tentar organizar minhas quinquilharias e bugigangas, que alguns visitantes chamam de casa, biblioteca e arquivo.

É uma quase ‘sucata’ ou mesmo ‘’vuco-vuco’, sem vendas. Na verdade, é meu santuário, local aonde até espiritualmente me sinto muito bem. Tentei ajeitar as coisas, nesse tempo, mas não deu ainda. Dizem que reforma e arrumação em casa de pobre não acaba nunca em sua vida. E mesmo depois de morto, ainda tem a venda ligeira da tapera e seus pertences, pelos herdeiros, os quais só pensam em lucros e ganâncias.

Voltei hoje as minhas velhas histórias chatas de sempre. Escapei ‘fedendo’, da atual desgraceira do Covid. Acho que devido ao abençoado clima rural daqui da Lagoa Papary, de Nísia Floresta. Sou um dos poucos que não tiveram essa praga tão falada da pandemia. Estou vivo e forte para escrever até a memória não desaparecer. Sempre puxo o passado, como as fiadeiras de rendas, gostem ou não.

O genial Nelson Gonçalves, bradou com sua voz inigualável a volta do boêmio, como forma de rever os amigos e os bares do bom passado. Já Lupicínio Rodrigues, aceitou a sua amada de volta, em nome do amor e de sua cara de pau: “… Entre, meu amor, fique a vontade… a casa é sua…”. E o Paulo Vanzolini, acusou a sua ‘volta por cima’, depois de sacudir a poeira, coisa que mesmo assim, eu não voltaria.

A volta tem que ser alegre e abençoada a casa que nos tratou com dignidade e amizade! O povo, com sua sapiência, nos ensina que o rio e o cristal quebrado não voltam a ser como antes… Eu confesso que sou opinioso de família materna e paterna, com certos tipos de rejeições as voltas. Um tio de minha mãe, Antônio, que eu conheci lá em Pendências, passou 50 anos sem sair de casa depois de uma jura ao seu genitor e não voltou a ver a rua calçada e eletrificada. E só saiu morto no caixão preto. Um irmão de meu pai, tio João, bem jovem, depois de escapar com vida de uma surra de minha avó, fugiu de Natal para o Rio de Janeiro. Morreu velho e não voltou a terra em que nasceu. Meu primo materno, Chico de Maneco, saiu de Pendências para morar na vizinha Macau e um dia confirmando a jura de não mais voltar ao seu nascedouro, disse-me: “Primo, depois de minha morte, se minha alma tiver vergonha, ela não volta a Pendências!”.

E eu teria muitos exemplos familiares, inclusive meus, mas deixarei aqui, para finalizar essa delonga, o exemplo da história de dona Inez, casada com seu Manoel, que ao sair de casa nunca mais voltou e deixou um atrevido e realista bilhete, perto do fogão de lenha. Uma sábia desculpa para não voltar ao seu ex amor. História triste de um amor opinioso e sem volta, musicada divinamente pelo genial Adoniran Barbosa: “Pode apagar o fogo Mané, que eu não volto mais…”. Ao que parece, essa dona Inez, era do meu tipo, opiniosa e nada de voltar fácil…

Para fechar a porteira nesse domingo de maio, eu lembraria que Fernando Pessoa, o grande poeta português, ensinou-nos que apenas o ‘navegar’ é preciso, mas o voltar, nem sempre!

 

Maio de 2021. Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.

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