A eternidade em um segundo

Do médico, Francisco Edilson Leite Pinto Júnior, recebo crônica sobre meu primo-irmão Carlos Ernani Rosado Soares que, de tão expressiva, faço questão de reproduzir neste espaço.

A eternidade em um segundo

 

Por Francisco Edilson Leite Pinto Júnior

“O professor que sabe expor suas ideias com vida, com amor, com alegria, é insubstituível”.

(Gabriel Perissé)

Recentemente, na aula inaugural de oncologia da UFRN, a aluna Cinthia me perguntou: “Professor, por que o senhor resolveu fazer medicina?”. Parei alguns minutos para refletir. Em questão de segundos, veio o poema de T.S. Eliot em minha mente:

O tempo presente e o tempo passado. Talvez estejam ambos presentes no tempo futuro, E o tempo futuro no tempo passado”.

Pois bem, essa resposta que eu teria de dar no segundo próximo, para a aluna, sua explicação estava no passado.

“Perdi meu pai quando tinha três meses de idade. Aí resolvi fazer medicina para combater a morte. Para lutar contra ela, dia após dia. Para que ela nunca mais seja capaz de tirar o pai de alguém tão cedo…”, foi assim que eu respondi para a minha curiosa aluna. Tentei continuar dando a aula, mas, a cada segundo, surgia em minha mente fatos do passado, influenciando o futuro da minha exposição (o passado presente no futuro, como lembrou T. S. Eliot).

E como foi difícil falar do paciente oncológico, lembrando-me dos terríveis dias dos pais que passei na minha infância sem tê-lo ao meu lado. Lembrei-me de que certa vez, indagado por um colega de classe sobre o que eu daria de presente no dia dos pais, a minha resposta foi: “uma passagem de volta!”. Ele não entendeu nada e nem muito menos eu entendia porque o destino tinha selado a sua sentença e contra ela não haveria recurso nenhum a ser impetrado…

Pois bem! Vinte anos buscando lutar contra a morte. Mais precisamente, no dia 03 de março de 1986, às 13:30h, já cursando medicina, eis que me entra um coração enorme, vestido de branco, com uns óculos fundo de garrafa, abre um sorriso cativante e diz: “Boa tarde! Sejam bem vindos à Disciplina de Técnica Operatória e Cirurgia Experimental da UFRN. Meu nome é Ernani Rosado”.

Depois de apresentar cada um dos outros professores da disciplina, iniciou a sua aula sobre história da cirurgia. Logo me apaixonei por aquela disciplina. Logo me apaixonei por aquele professor. Nas entrelinhas dos seus ensinamentos, o amor estava presente em tudo.

Ali, a carne se fazia verbo e o verbo era sempre o mesmo: amar! Amar o paciente sobre todas as coisas. Amar a missão. E nunca, jamais vender a sua alma ao diab o se alinhando com interesses escusos para ganhar benesses de laboratórios e indústrias farmacêuticas.

Saí daquela aula radiante. E com um desejo enorme no meu coração: como eu queria que aquele homem fosse meu pai, afinal, poderíamos lutar juntos contra a morte… Rainer Maria Rilke, na sua “Carta a um jovem poeta”, nos alertou: “Há de se reconhecer, aos poucos, que aquilo a que chamamos destino sai de dentro dos homens em vez de entrar nele. Muitas pessoas não percebem o que dela saiu, porque não absorveram o seu destino enquanto o viviam, nem transformaram em si mesma”…

Logo, de forma impetuosa – atitude incomum para quem tinha a timidez como algo a vencer tanto quanto a morte-, passei a frequentar a enfermaria da 1aDCC. E de tanto insistir, eis que um dia, o professor Ernani perguntou o meu nome, e ao respondê-lo, vi o seu olhar assustado: “Você é de Mossoró? Filho de Edilson Pinto?!”. No dia seguinte, às 07:00h, entendi o motivo daquele espanto. O professor Ernani entrava na enfermaria, carregando debaixo do braço um livro gasto pelo tempo. Era o diário de sua mãe, onde estava escrito: “Ernani ontem, brincou com fulano, beltrano e com Edilson Pinto”.

– Pois é, meu caro, seu pai foi um grande amigo meu de infância. E eu lamentei muito a sua morte.

Após dito isso, colocou o diário debaixo do braço direito e o meu ombro debaixo do seu braço esquerdo, e nunca mais me deixou longe dele. Estava concretizada a adoção feita no mais importante de todos os tribunais, o do coração… Realmente, não foi à toa que Lucas, no seu Evangelho (11: 10-11), diz: “Por que qualquer um que pede, recebe; e quem busca, acha… E qual é o Pai de entre vós que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra?”.

Tem razão Vinícius de Morais, quando diz que a vida é a arte do encontro. Encontrei e ganhei ali um pai, um professor, um mestre, um amigo, um parceiro de futebol (Flamengo e ABC). Eram tantas as coisas em comuns, que ficava nítida a interferência divina. Resolvi fazer cirurgia e segui a docência. Eu precisava do meu pai adotivo para lutar contra a morte. E foi assim, durante trinta anos.

Inúmeras foram às vezes que operávamos juntos. Algumas me marcaram, como no dia que estávamos operando um caso extremamente difícil e chegou uma hora em que nem eu e nem ele sabíamos o que fazer, diante de tanto envolvimento e por estarmos tão perto da solução, na qual não conseguíamos enxergar… Aí uma voz, de fora do campo cirúrgico de um aluno do quinto período de medicina, disse: “Professores, que tal irem por aqui? Acho que vai facilitar a retirada desse tumor”.

Dr. Ernani, ao invés de mandar o aluno se calar – atitude bastante comum nesse mundo cirúrgico de tanta empáfia e soberba – olhou para mim e rindo disse: “Boa, garoto! Vamos por aqui mesmo, Dr. Edilson! Como é o seu nome? Flaubert Sena, você será um grande cirurgião”. O professor Ernani também era um grande profeta, viu naquele aluno, o que o futuro nos confirmou (o tempo presente no futuro, como lembrou T. S. Eliot).

Ele nunca perdia a capacidade de ensinar. Quando escrevi o meu primeiro artigo “Medicina no fundo do posso: o preço da desunião”, logo cedo recebi o seu telefonema: “Grande artigo, Dr. Edilson! Só um adendo: eu não teria colocado aquela parte”.

Ele se referia a uma crítica que eu tinha feito a uma determinada pessoa. Eu o indaguei: “Mas professor, não é verdade o que eu escrevi?!”. Aí veio a sua lição: “É, Edilson, é verdade. Mas existem verdades que a gente não deve dizer nem para nós mesmos!”. Ali estava outra qualidade do professor Ernani: lealdade aos amigos. Defendê-los sempre.

Outro momento mágico que vivi com o professor Ernani foi na aula da saudade da turma de medicina da UnP, no dia 14/07/2014. Fui escolhido orador daquela solenidade e resolvi fazer o discurso esclarecendo o porquê de ter escolhido a docência como missão de vida. Falei que, na infância, eu achava que minha mãe tinha enlouquecido por sair de casa tão cedo para trabalhar como professora em três turnos e era feliz mesmo ganhando pouco.

Depois, disse que passei a entender que essa “loucura” era contagiante, pois tinha visto esses mesmos sinais e sintomas em outros professores meus, como: Coquinho (história), Fernando Suassuna (biologia), Luiz Alberto (infectologia) Marcos Leão (hematologia), Aldo Medeiros (cirurgia), Celso Matias (clínica Médica), Francisco de Lima (clínica Médica)… Até chegar ao mais “louco” de todos: o professor Ernani Rosado, já que o melhor dos vinhos deve ser servido no final…

Quando escrevi o discurso, nunca imaginei que o professor Ernani Rosado estivesse na plateia. Não havia, a meu ver, motivos para ele estar ali. Mas ele estava. Ele e a sua inseparável companheira, D. Madalena – o ser humano mais simpático e educado que eu já conheci.

Quando entrei no auditório da UnP e vi Dr. Ernani sentado lá, o coração beta-bloqueado disparou… Mais uma vez Deus tinha aprontado das suas… Pois bem! Eis o trecho do discurso que li, naquele dia, chorando, como é comum quando o coração fica pequeno demais para aguentar tanta emoção:

“Meus queridos e eternos alunos,

Permitam-me falar daquele que mais me influenciou com a sua ‘loucura’, com a sua paixão: Prof. Ernani Rosado. O mestre de todos os mestres desse Estado. Com ele, aprendi filosofia, futebol, artes, cirurgia, enfim, muita coisa mesmo. Mas a maior lição aprendida foi a humildade.

Numa manhã de janeiro de 2010, recebo o convite para auxiliá-lo em uma cirurgia de hérnia inguinal. Tudo ocorreu sem problemas. E na sala de estar médico, após prescrever o paciente, ele olhou para mim e disse: ‘missão cumprida, Dr. Edilson! Esta foi a minha última cirurgia. Vamos para casa. E muito obrigado pela sua ajuda’. Terminava ali, uma das maiores carreiras cirúrgicas do nosso Estado e por que não dizer do nosso país. E de forma simples e humilde. Sem alardes, sem pompas. Apenas com a sensação de dever cumprido! Nunca esquecerei esse momento…

O professor Ernani tinha a maior característica dos grandes homens: a humildade.

No dia em que soube da sua cirurgia de urgência e da gravidade do seu caso, fiquei desnorteado. Vi que, mais uma vez, perderia meu pai… Corri para a UTI, onde ele estava internado. Ainda não tinham proibido visitas. Mesmo assim, falei com o médico de plantão, um ex-aluno meu, que disse: “Professor, na UTI em que eu estiver dando plantão, as portas estarão sempre abertas para o senhor”.

Agradeci. Fiquei parado, sem coragem de me aproximar. Meu ex-aluno, percebendo a minha insegurança – afinal, não queria me despedir dele assim, com a frieza das máquinas- disse: “Vá lá, professor. A sedação está bem superficial e se o senhor falar, ele vai ouvir”.

Tremendo, me dirigi ao leito e disse: “Prof. Ernani, eis um flamenguista que veio visitá-lo!”. Ele abriu os olhos, mesmo com um tubo na garganta, deu um sorriso. O sorriso de sempre. O sorriso alegre e tranquilo. O sorriso de um guerreiro que não estava perdendo a batalha para a sua doença, mas sim, que tinha vencido a guerra contra a insensibilidade, contra a desumanidade e a falta de carinho tão comum hoje em dia na profissão médica.

Ontem, meu mestre/pai descansou. Depois de lutar o bom combate. Semeando o sonho de lutar desesperadamente para mudar o caráter de um menino, através da educação, para mudar, assim, o seu destino e, consequentemente, o destino do mundo…

Quanto a mim, resta a tristeza da sua partida e também a alegria de ter convivido com alguém tão grande, que viveu muito à frente do seu tempo… E por falar em tempo, recorro-me agora a Wiliam Blake que, certa vez, escreveu: “Ver o mundo em um grão de areia/ E um paraíso numa flor selvagem. Segure o infinito na palma da sua mão/ E a eternidade em uma hora”.

Aquele último sorriso, de alguns segundos que ganhei naquela UTI, estará eternizado para sempre dentro do meu coração, pois “o que a memória ama, fica eterno!”.

Vá em paz, querido professor e pai, Ernani Rosado!

 

Francisco Edilson Leite Pinto Junior – Aluno do segundo período do curso de Direito da UnP, professor, médico e escritor. E agora, definitivamente, órfão de pai.