A escalada da desigualdade no Brasil

No dia 17 de fevereiro de 2020 um estudo divulgado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que em 2018 a desigualdade de renda no país atingiu o nível mais alto da década. Foram dezoito semestres desde 2014. O levantamento aponta que o índice de Gini – indicador que mede a desigualdade de renda – teve a sua primeira redução no último trimestre de 2019, interrompendo quatro anos e meio de aumento na concentração de renda. O índice, cuja escala vai de 0 a 1, passou de 0,628 para 0,627 (quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade de renda).

O fato é que a desigualdade social cresceu desde 2014.  Outro estudo publicado pela FGV A Escalada da Desigualdade: Qual foi o Impacto da Crise sobre Distribuição de Renda e Pobreza? Publicado em novembro de 2019 e disponível em https://cps.fgv.br/desigualdade,  utilizando dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicilio Contínua (PNAD) e do índice Gini, mostrou que do quarto trimestre de 2014 até agosto de 2019, a metade mais pobre perdeu 17,1% de sua renda, enquanto a classe média, correspondente a 40% da população, empobreceu 4,16% , os 10% mais ricos tiveram aumento de renda de 2,55% e o 1% mais rico teve ganho de 10,11%.

A constatação é que foram sete anos de aumento da concentração de renda, ou seja, 17 trimestres seguidos.

Em relação ao que chamaram de “perdas por grupos sociais” as maiores perdas de renda foram de jovens de 20 a 24 anos, analfabetos, negros  e moradores das regiões Norte  e Nordeste.

Em 2017 foi aprovada uma reforma trabalhista, com mudanças significativas  nas Leis Trabalhistas,  que tinha como objetivo o “aquecimento” do mercado. O fato é que ele não veio, nem gerou os empregos prometidos e o que constatou desde então foi o aprofundamento da desigualdade

Enquanto o Produto Interno Bruto (PIB) – a soma de todas as riquezas produzidas no país – cresceu 1,1% em 2017 e 2018, após as quedas de 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016, o rendimento dos 10% mais ricos da população subiu 4,1% em 2018 e o rendimento dos 40% mais pobres caiu 0,8%, na comparação com 2017.

O índice que mede a razão entre os 10% que ganham mais e os 40% que ganham menos, voltou a crescer em 2018. Ou seja, os 10% da população com os maiores rendimentos ganham, em média, 13 vezes mais do que os 40% da população com os menores rendimentos.

Em 2020, no dia 6 de fevereiro, foi divulgada  mais uma pesquisa :  Síntese de Indicadores Sociais (SIS)  do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) relativa a 2018. O levantamento começou a ser feito em 1999, com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), que desde 2012, passou a utilizar os dados da Pnad Contínua e  utilizando também a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) e o Sistema de Contas Nacionais.

Segundo os dados, além da falta de ganho real no salário mínimo, houve um crescimento do trabalho informal, chamado de “subutilização no mercado de trabalho” que atingiu o maior índice em 2018, com 41,4% das pessoas ocupadas nessa condição.  Houve, portanto uma piora desde 2014.  Segundo os dados 13,5 milhões de pessoas tinham renda de até R$ 145 por mês.                 O IBGE destaca também que há mais pessoas em situação de pobreza extrema, das quais 72,7% são pretas ou pardas. Na faixa da pobreza, considerando o rendimento per capita de até R$ 420 por mês, houve uma leve redução, passando de 26% em 2017 para 25,3% em 2018, com  52,5 milhões de pessoas.                  Sobre as condições de moradia, a maioria não tem acesso  aos serviços de saneamento, coleta de lixo,  abastecimento de água regular e o esgotamento sanitário.

Quanto ao estudo relativo ao segundo trimestre de 2019, entre outros aspectos, os dados indicam que a maior parte dos trabalhadores domésticos (71,6%) está na informalidade, ou seja, de 6,24 milhões, 4,47 milhões trabalham sem carteira registrada.

Nesse sentido, como compreender as declarações feitas pelo ministro da economia Paulo Guedes no dia 12 de fevereiro de 2020, ao afirmar num Seminário organizado pelo grupo Voto que “Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada. Pera aí”.

É a explicitação do preconceito, racismo e desprezo pelos pobres, além de ofender a dignidade das empregadas domésticas. Por que as empregadas domésticas não podem ir a Disneylândia?  Mas como, se sequer tem carteira assinada e ganhando um salário mínimo que mal dá para sobreviver? É mais uma frase lamentável do conjunto das frases lamentáveis não apenas dele, que comparou servidores públicos a parasita, como de outros ministros, como o que responsabilizou os pobres pelo desmatamento ou do presidente da República ao dizer numa transmissão ao vivo nas redes sociais no dia 23 de janeiro de 2020 que os índios estão a evoluir e se tornando cada vez mais humano… (Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – afirmou que a entidade irá denunciar Bolsonaro na Justiça pelo crime de racismo).

Sobre o trabalho doméstico, que é um dos aspectos da desigualdade no país,  no artigo A desigualdade no Brasil. E o lugar reservado às domésticas de Camilo Rocha e publicado no dia 13 de fev de 2020 na revista Nexo, há referência a uma matéria publicada em 2012 na revista Época intitulada “Por que a empregada sumiu” na qual se afirmava “que estava ficando mais difícil para as classes de maior renda contratar esse tipo de profissional. Segundo o texto, graças a melhorias na escolarização e na economia, havia menos mulheres dispostas a trabalharem na casa dos outros. A revista chamou o fenômeno de “revolução cultural”. (https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/02/13/A-desigualdade-no-Brasil.-E-o-lugar-reservado-%C3%A0s-dom%C3%A9sticas).

Em 2015, mais um avanço: o Congresso Nacional aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) conhecida como a PEC das Domésticas, que ampliou seus direitos trabalhistas  (e um dos deputados que votou contra foi justamente o atual presidente, Jair Bolsonaro, com o argumento de que elas teriam mais dificuldade de arrumar emprego com a aprovação da nova legislação).

Com o crescimento do desemprego, houve uma deteriorização das condições de trabalho, que também atingiu o trabalho doméstico. O artigo O trabalho de empregada doméstica e seus impactos na subjetividade Christiane Leolina Lara Silva José Newton Garcia de Araújo Maria Ignez Costa Moreira Vanessa Andrade Barros publicado na Psicologia em Revista (Belo Horizonte, v. 23, n. 1, p. 454-470, jan. 2017) também referenciada no artigo da revista Nexo, amplia a discussão sobre o tema ao analisar o contexto histórico do surgimento do trabalho doméstico, apresentando um perfil sociodemográfico e as leis que historicamente regulamentam a profissão no país.

Entre outros aspectos, salientam que “apesar das lutas da categoria e dos avanços legais que regulamentaram a profissão, com a Lei Complementar nº 150/2015, constatou-se que o trabalho doméstico ainda é fonte de ressentimentos e humilhações”. Como mostram os autores, o trabalho doméstico “datado historicamente na escravidão, carrega o peso do preconceito e da desvalorização, materializada na perda da igualdade dos direitos trabalhistas, só recentemente reparada, através da aprovação tardia da PEC das empregadas domésticas. Todos esses dados evidenciam que o trabalho de empregada doméstica tem impactos negativos em sua subjetividade”.

A aprovação da PEC na época (2015), ainda no governo de Dilma Rousseff, combatida por muitos, inclusive no Congresso Nacional, teve por objetivo garantir direitos trabalhistas para as domésticas. O que houve na sequência, com o impeachment da presidenta foi à redução ou eliminação de direitos trabalhistas e outros desdobramentos da política econômica de uma forma mais geral, com cortes em benefícios previdenciários, nos orçamentos das áreas de saúde e educação etc.

O que constata é que a desigualdade social tem uma longa história no Brasil, como mostra Pedro H.G. Ferreira no livro Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre ricos no Brasil, 1926-2013 (Anpocs/Hucitec Editora 2018) e que continua. E com as políticas de austeridade do governo, o cenário  provavelmente não mudará, ou seja, se o ingresso no mercado de trabalho pode ser um dos meios de redução de pobreza, os dados da pesquisa do IBGE indicam que a faixa dos maiores rendimentos apresenta crescimento de renda enquanto os menores rendimentos estão estagnados ou com perdas. Nesse sentido,  embora tenha havido uma leve queda nos índices de desigualdade no 18º  trimestre desde 2014, nada indica haja ou haverá uma efetiva política econômica que  consiga evitar a continuidade da escalada da desigualdade.

Homero Costa

Homero Costa Homero Costa, cientista político e professor da UFRN

Homero Costa, cientista político e professor da UFRN