A CIGARRA E A FORMIGA

Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor.

Em criança havia, na Rádio Rural de Natal, aos domingos de manhã, um programa voltado para as crianças. Nele eram vinculadas histórias radiofônicas infantis. Robin Hood e a flecha assobiadora. O Gato de Botas. “Quando calço minhas botas / dou três saltos num segundo / vou até o fim do mundo / num minuto chego lá…” O Casamento da Senhora Baratinha com o Senhor Dom Ratão. “Quem quer casar com a Senhora Baratinha / que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha…” Havia, não lembro o nome, uma história em que a formiguinha ficava presa na neve, morrendo de frio, e ia subindo a escala de seus apelos. Primeiro ao sol, depois ao muro, ao rato, ao gato, ao cachorro, ao homem e à morte enfim, que diz: “– Mais forte que eu é Deus, que me governa”. Uma das minhas prediletas era os Quatro Heróis que depois descobri se tratar do conto de Grimm, Os Músicos de Bremen. Contava de um burro velho que ouve o dono combinar a sua morte e foge. Durante a fuga encontra um cão, um gato e um galo que passam pelo mesmo drama e passa a carregar os três em suas costas na jornada. Pra animar, cantam, imagine só a desafinação, o zurro do burro, o ladrar do cão, o miar do gato e o canto do galo. “– Só  porque  não  vou  a  feira,  meu  patrão  quer  me  matar/ – E o  meu  do  mesmo  modo,  só  porque  não  vou  caçar/ – Camundongo  agora  é  mato,  meu  patrão  quer  me  afogar/ –  Se  eu  não  ando  tão  ligeiro  na  panela  eu  vou  parar”. E aí o refrão:

– Pum! Pum !

– Au! Au !

– Miau!

– Cococorocóóó-có!

Mas me fascinava a fábula da Cigarra e da Formiga. Todos sabem: a cigarra canta enquanto as formigas trabalham arduamente. Vem o inverno (o inverno pesado do norte da Europa) e a cigarra procura abrigo e calor junto às formigas, que, prevenidas, tinham a despensa cheia e o fogo garantido. A resposta é duríssima: – Você não cantou? Então agora dance! E a cigarra, supomos, era condenada a morrer enregelada.

Não sei se Esopo escreveu pensando nas crianças, mas nunca vi nada de edificante nessa fábula. Onde ficam a hospitalidade, a solidariedade e a compaixão? Que dureza de coração permitiria a alguém recusar abrigo e proteção por o outro não haver sido precavido e ter priorizado os valores da arte?

Até que ouvi a canção que só muito tempo depois soube ser de Braguinha e que propunha um novo fim para essa fábula triste. Na música, a cigarra afirma sua alegria em ser artista (Sou feliz/Cigarra cantadeira/Canto a vida, canto a luz/Pois quem cantar/Canta a vida inteira/Faz os sonhos mais azuis) e coloca as coisas em seus devidos lugares, pois Braguinha, genial, arremata, fazendo as formigas abrirem a porta e acolherem a cigarra.

Toda ocupação útil é trabalho. Precisamos, então, entender as artes como ofício, e um duro ofício. Além de duro, necessário. O que seria de nós sem a música, a dança ou a poesia, o teatro, as artes, enfim? Como imaginar um mundo sem Beethoven, Shakespeare, Van Gogh, Maria Callas, Drummond, Niemeyer, Monteiro Lobato, Elis Regina? Seria um mundo mais árido e pobre com certeza se não existissem o Boi Calemba e o Congo de Combate de São Gonçalo, a literatura de cordel, os cantadores de feira, as rezadeiras, os artistas de rua. Nenhum trabalho é dispensável. Deve haver, sim, intelectuais, banqueiros, cientistas, operários, políticos, os administradores; assim como os poetas e pianistas, as bailarinas, palhaços e acrobatas, enfim, toda essa variedade de funções que se complementam e nos completam para que formemos um grande conjunto, operoso e harmônico, fazendo de tudo isso um cântico de louvor e gratidão à Criação.

Senão, como conclui Braguinha fazendo cigarra e formigas cantarem juntas, como em um hino à beleza da vida: “De que vale um tesouro/Junto às flores do arrebol?/Quem quiser que junte todo o ouro/Eu prefiro a luz do sol”.

 

NATAL/RN.

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