Para o escritor Evandro Affonso Ferreira

 

Não, minha Musa, não diga nada:

apenas não me impeça

de aconchegar você nelas,

minhas impossibilidades.

Tua musa, Evandro, há de ouvir teus clamores. Apesar de que, nos dias de hoje, plenos de estertores, nossas musas olham-nos de esguelha, vis marrecos cantadores. Lembrei-me de Licânia. Por quê? Explico-te, nobre amigo! Lá é terra em que até as lavandeiras, na beira do rio, clamam por seus amores ao som de sonetos de grandes versejadores. 

 

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Ah, minha amada Musa: enlouqueça meia hora

comigo numa tarde qualquer de uma sexta-feira

qualquer numa cidadezinha

drummondiana qualquer.

Enlouquecer é sina que nos sublima, é carta de alforria para os nossos melhores desatinos, é fúria de Titãs no rabo dos malsinos, é alegria e festa no cocuruto dos poetas ladinos. Enfim, Evandro, o Destino há de te conceder (com a Musa a te defender) uma meia hora qualquer para criares páginas de dobres; como se, em cada palavra, ecoasse um sino, ao ler-te numa tarde qualquer de domingo. 

Ah, meu amado Mestre, aqui nas ribeiras de Licânia, minha eterna cidadezinha qualquer, as musas andam a correrem loucas, desarvoradas, descabeladas… com medos das heresias poéticas dos que se intitulam discípulos do estro de Camões. Por esta, acredito, nem o Divino esperava!… 

 

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Vamos, minha Musa, escarafunchar a sombra um do outro com o facho de luz das possibilidades? Sim, eu sei: a vida é uma farsa, mas vamos cometer esse engano, juntos, de mãos dadas pelas ruas e vielas e sumidouros das ilusões? 

O dificultoso, creia-me, Affonso, é o esconso da porta mais antiga; ao ouvirmos os seus reclames de eras, ultrajes de primevos tempos em que a voz do tempo futuro era a melhor das antanhas quimeras. Hoje, a vida é besta e repleta de bestões, doutores das falsas doutrinas das odes, em que, em uma estrofe, não se escande uma rima, muito menos no poema um mísero refrão. 

Leva-me contigo e tua Musa, pois preciso sumir por um tempo. Prometo-te que irei acocorado, e calado, apenas a haurir tuas palavras altivas e enigmáticas, pejadas de loas, sacadas dos escaninhos perfumados de esplendor e escansão. 

 

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Ah, minhas palavras ficaram de repente cabisbaixas, acocoradas no porão do Desconsolo. Mas, num mutirão excitante, juntaram suas dezenas de vogais e consoantes afrodisíacas e levantaram altivas e chegaram aí até seu corpo deslumbrante e belo e semelhante aos néctares do Olimpo.

Em Licânia, quando os ribeirinhos escutam os dobres do campanário ou a voz melíflua de um mestre cantador, a cidadezinha mergulha no milagre de uma paz divina: o ar banha-se de lírico azul, os sanhaços desfilam no ar com seus bicos orquestrais; enquanto, por entre as ruas, becos e vielas, os maridos com suas mulheres ardentes arquejam em idílicos coitos celestiais. O amor é o melhor afrodisíaco para um pretenso menestrel. 

 

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Às vezes fico quieto, acocorado num canto de mim mesmo estudando a anatomia do impossível. Sim: ele, o impossível, vive-mora no subsolo da transcendência – pertinho, a poucas quadras de você, minha Musa. 

Não, Evandro, nos últimos dias, corro léguas a solfejar. Ridículo, sem rima, compasso nem alumbramento. 

O desconsolo meu é grande, pois minha Musa mudou-se para paradeiro desconhecido. Deixou-me uma carta em letras góticas, na qual lastima o meu Destino e pede que eu a esqueça, numa redação em estilo claro, duro e cristalino. Então, logo em seguida, a Transcendência afastou-se de mim, o Impossível vive a zombar dos meus passos, e a Inspiração morreu no miolo de mim. Isto tudo em Licânia, minha cidadezinha qualquer. 

 

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Ontem, deixei a velhice ali no quintal das possibilidades, pendurada num Estendedouro de Primaveras.

Ontem, Evandro Affonso Ferreira, encontrei-me com a minha velhice. Ela me vinha com passos firmes, adentrando o varal das minhas quimeras, louca para roer as cordas das utopias e a me converter em crédulo das minhas possibilidades. Ao dar com a Primavera, com o seu rosto de luz e flores à frente dos olhos meus, pulei depressa o muro da casa, e cuidei de ganhar a íngreme Rua do Inusitado. Atrás de mim, ainda ouvi os gritos roucos: “Louco! Louco!…”. Digo-te isto, amigo, sem a menor das vaidades. 

Perdão, concatenei histórias minhas mil e nem reparei no fulgor plangente das glórias tuas. 

 

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Ah, Poeta, não me deixe viver agora sussurrando nos remotos de mim mesma (grita tua Musa): não é aconselhável entrar de vela acesa nos próprios recônditos. 

Contigo, Evandro, fui, vim e fiquei; quieto, alumbrado e sussurrando passagens recônditas que abandonara, inéditos versos para desfazer de vez esse enxame invisível de silêncios idílicos

Nossas musas nos chamam. Vai, Evandro! No Reino das Palavras, tu és rei. 

Sim: é perceptível o êxtase-sintático delas quando fogem excitadas do próprio leito-léxico imaginando que daqui-a-pouco, agorinha, vão se aconchegar noutro leito mais veludoso e mais afrodisíaco… 

 

Obs.: Os trechos em itálico foram extraídos do livro Moça quase-viva enrodilhada numa amoreira quase-morta, de Evandro Affonso Ferreira (São Paulo: Editora Nós, 2019). 

 

Clauder Arcanjo

Clauder

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