500 anos da Reforma Protestante – parte 1

por Jorge Henrique Barro

Parte 1 – Introdução e Pré-Reforma

O evento precipitante da Reforma Protestante é geralmente considerado a partir da publicação de Lutero e suas 95 Teses na porta da Igreja de Wittenberg (Alemanha), em 31 de outubro de 1517.

Nenhuma ação humana é realizada no vácuo! O ser humano é um ser em sociedade e os movimentos se dão em função das realidades existentes em cada época. Como exemplo, recentemente milhares de pessoas foram às ruas no Brasil protestar contra o governo e suas práticas. Foi uma reação as ações tomadas pelo estado.

Para entender essas ações-reações dos movimentos é fundamental entender os acontecimentos e fatos geradores e provocadores. Assim, não se pode, por exemplo, estudar os chamados CINCO SOLAS da Reforma Protestante de forma isolada e separada das circunstâncias daquela época. Por que não? Porque eles são respostas às práticas da igreja que estavam em desacordo com a Palavra de Deus.

Quando os Reformadores se levantaram para afirmar os CINCO SOLAS, o que cada um deles estava confrontando? Estavam confrontando uma teologia não bíblica e buscando resgatar a Palavra de Deus que era negligenciada e adulterada. São eles:

• Sola Scriptura (“somente a Escritura”)
• Sola Fide (“somente a Fé”)

• Sola Gratia (“somente a Graça”)

• Solus Christus (“somente Cristo”)

• Soli Deo gloria (“somente a Gloria de Deus”)

Por isso, é necessário se ter um mínimo de entendimento histórico do que estava acontecendo para compreender o que justificou o surgimento da Reforma naquela época. Certamente sua compreensão será outra ao discernir tais fatores. É o que veremos agora!

A Pré-Reforma

O século XVI na Europa foi um grande século de mudanças em muitas frentes. Os humanistas e artistas do Renascimento ajudaram a caracterizar como sendo a era do individualismo e autocriatividade. Humanistas buscaram restaurar a dignidade da humanidade enquanto homens como Maquiavel injetaram o humanismo na política. O Renascimento ajudou a secularizar a sociedade europeia. O ser humano agora era o criador de seu próprio destino.

O Renascimento desencadeou a noção muito poderosa de que o ser humano faz sua própria história.

Temos que perguntar: – Por que a Reforma ocorreu? Em geral, a insatisfação com a igreja podia ser encontrada em todos os níveis da sociedade europeia. Primeiro, pode-se dizer que muitos cristãos devotos encontraram a crescente ênfase da Igreja em rituais inúteis na busca pela salvação pessoal. Houve a mudança da salvação de grupos inteiros para algo mais pessoal e individual. Os sacramentos tornaram-se formas de comportamento ritualizado que já não faziam sentido. Tornaram-se desprovidos de significado. E quanto mais e mais pessoas passavam a viver em cidades, mais podiam discutir suas preocupações com os outros. Em segundo lugar, o papado perdeu grande parte de sua influência espiritual sobre o povo devido à crescente tendência da secularização. Em outras palavras, papas e bispos agiam mais como reis e príncipes do que como guias espirituais.

E, novamente, pelo fato de tantas pessoas se aglomerarem nas cidades, as luxuosas casas e palácios da igreja eram percebidos por mais pessoas de todos os setores. Os pobres ressentiam a riqueza do papado e os muito ricos estavam com ciúmes dessa riqueza. Ao mesmo tempo, os papas compravam e vendiam os altos ofícios (para ascensão aos altos escalões do clero), e também vendiam indulgências. Tudo isso levou à crescente riqueza da igreja, bem como criou novos caminhos para abusos de todo tipo. Finalmente, no nível local da cidade e aldeia, onde os abusos eram contínuos, alguns oficiais da igreja ocuparam vários cargos ao mesmo tempo em que viviam de seus rendimentos fora da igreja. O clero tornou-se negligente, corrupto e imoral. As pessoas começaram a notar que os sacramentos estavam envoltos em complacência e indiferença. Algo estava terrivelmente errado.
Esses abusos exigiram respostas. Por um lado, havia uma tendência geral para o anticlericalismo, isto é, uma desconfiança geral e distinta e despreocupação com o clero. Algumas pessoas começaram a argumentar que o leigo era tão bom quanto o sacerdote, um argumento já avançado pelos Valdenses do século 12. Por outro lado, houve pedidos de reforma. Essas duas respostas criaram um terreno fértil para conflitos de todos os tipos, pessoal e social.

A fonte mais profunda de conflito era pessoal e espiritual. A igreja havia se tornado mais formal em sua organização, sem surpresa alguma, já que tinha dezesseis séculos de idade. A igreja tinha seu próprio direito canônico elaborado, bem como uma teologia dogmática. Tudo isso foi criado no Quarto Concílio de Latrão de 1215. Esse Conselho também estabeleceu a importância dos sacramentos, bem como o papel do sacerdote na administração dos sacramentos. 1215 também marca o ano em que a igreja elaborou ainda mais sua posição sobre o Purgatório. Acima de tudo, o Quarto Concílio Lateranense de 1215 estabeleceu a doutrina de que a salvação só poderia ser conquistada através de boas obras, jejum, castidade, abstinência e ascetismo.

Enquanto isso, as pessoas comuns buscavam uma religião mais pessoal, espiritual e imediata – algo que as tocaria diretamente no coração. Os rituais da igreja agora significavam muito pouco para elas. Precisavam de algum tipo de garantia de que elas estavam fazendo a coisa certa, de que realmente seriam salvas. A igreja pensou pouco em se reformar. As pessoas desejavam algo mais, mas enquanto isso a igreja, burocratizada e clericalizada, parecia prometer menos. O que parecia ser necessário era uma reforma geral do próprio cristianismo. Apenas uma transformação tão importante poderia afetar as mudanças refletidas nos desejos espirituais das pessoas.

A igreja enfrentou inúmeros desafios diretos ao longo dos séculos XIV e XV. Vejamos:

• Os hereges agrediam a igreja desde o século 12. Os hereges eram cristãos que se desviaram do dogma cristão. Muitos não acreditavam no batismo cristão – a maioria se sentia fora da igreja;
• Havia também numerosos místicos que desejavam uma iluminação divina direta e emocional. Eles alegaram que tinham sido iluminados por uma luz interior que lhes assegurava a salvação;
• Havia um influente movimento filosófico chamado nominalismo que enfatizava a realidade de qualquer coisa concreta e real, duvidando assim da fé;
• O humanismo do Renascimento rejeitou quase completamente a matriz cristã e voltou-se ao Mundo Clássico, a verdadeira fonte de virtude e sabedoria;
• A ruptura do feudalismo e a descoberta e exploração do Novo Mundo deram lugar ao comércio e ao mercado (troca), bem como uma tendência crescente de ver a vida no aqui e agora como algo bom;
• A igreja também foi desafiada por uma consciência cada vez maior de etnia e nacionalismo – exemplo: Joana d’Arc e a Guerra dos 100 anos;
• Comerciantes e trabalhadores qualificados que viviam em cidades estavam crescendo e se tornando influentes, pois começaram a fornecer à Europa mais e mais produtos;
• Os reis europeus consolidavam seu poder sobre sua nobreza;
• Havia uma consciência, graças à idade da descoberta, que havia um mundo pagão fora do mundo da Europa que precisava ser domesticado.

E, um tema muito caro que acelerou a Reforma Protestante, foi indulgência que particularmente atraiu a atenção de Lutero que foi vendida em toda a Alemanha por Johann Tetzel (1465 – 1519), um frade dominicano. A tarefa de Tetzel era arrecadar dinheiro para pagar a construção da nova igreja – Basílica de São Pedro – em Roma. Em geral, uma indulgência libertava o pecador do castigo no Purgatório antes de ir ao céu. O sistema foi permitido pela igreja (desde 1215), mas que agora tomava força maior e sendo abusado pelo clero e seus agentes, como Tetzel.

A Reforma Protestante foi uma revolta teológica generalizada na Europa contra os abusos e o controle totalitário da prática da igreja daquela época. Reformadores como Martinho Lutero na Alemanha, Ulrich Zwingli na Suíça e João Calvino na França protestaram contra várias práticas antibíblicas da Igreja Católica e promoveram o retorno à doutrina bíblica. Como já visto, o evento precipitante da Reforma Protestante é geralmente considerado como a publicação de Lutero de suas 95 Teses na porta da Igreja de Wittenberg (Alemanha) em 31 de outubro de 1517.

Mesmo antes da Reforma Protestante, havia atitudes de resistência a algumas das práticas não bíblicas da Igreja Católica Romana, mas eram relativamente pequenas e isoladas. Os Lollardos, os Waldenses e os Petrobrussianos (seguidores de Pedro de Bruys, da cidade de Bruis, no sudeste da França) protestaram contra certas doutrinas católicas. Antes que Lutero jamais pegasse um martelo e se dirigisse para a Igreja Wittenberg, já havia alguns defensores da necessidade de uma reforma e a volta ao verdadeiro evangelho. Entre eles estavam John Wycliffe (1330–1384), um teólogo inglês e professor de Oxford que foi condenado como herege em 1415. Wycliffe atacou o que viu como corrupção dentro da igreja, incluindo a venda de indulgências, peregrinações, a veneração excessiva de santos e os baixos padrões morais e intelectuais dos sacerdotes ordenados. Wycliffe também repudiou a doutrina da transubstanciação, sustentou que a Bíblia era o único padrão da doutrina cristã e argumentava que a autoridade do Papa não estava fundamentada nas Escrituras. Alguns dos primeiros seguidores de Wycliffe traduziram a Bíblia para o inglês, enquanto outros seguidores, conhecidos como Lollardos, consideravam que a Bíblia era a única autoridade e que os cristãos eram chamados a interpretar a Bíblia por si mesmos. Os Lollardos também argumentaram contra celibato clerical, transubstanciação, confissão oral obrigatória, peregrinações e indulgências.

Outro foi John Huss (1369-1415), um padre da Bohemia que foi excomungado em 1410 e queimado na estaca em 1415 por sua oposição à Igreja de Roma; e também Girolamo Savonarola, um frade italiano que foi enforcado e queimado em 1498. Sua morte levou às Guerras Hussitas na Boêmia. Huss seguiu os ensinamentos de Wycliffe de perto, traduzindo o Triálogo de Wycliffe em tchecoslovaco e modelando os primeiros dez capítulos de sua própria De Ecclesia. Ele considerava a Bíblia como a última autoridade religiosa e argumentava que Cristo, em vez de qualquer oficial eclesiástico, é o verdadeiro chefe da igreja.

Jorge Henrique Barro – É doutor em Teologia pelo Fuller Theological Seminary (Pasadena. Califórnia – USA). Fundador e professor da Faculdade Teológica Sul Americana de Londrina e avaliador do MEC para Teologia.