Umas mãos – Clauder Arcanjo

Para Neimar Cândido

Câncio estremeceu; ouvindo os gritos da mãe, recebeu o prato que esta lhe ofertava e tratou de sentar à mesa para comer. Isto debaixo de uma saraivada de nomes: ingrato, injusto, maluco, filho desnaturado.

— Onde anda com a cabeça, que nunca escuta o que lhe digo, filho? Hei de contar tudo à sua irmã, para que lhe chame na conta do juízo com uma boa reprimenda. Ela, filha querida, e como sua irmã mais velha, pode incutir senso nesse seu cocuruto. Maluco! Filho desnaturado!

Maria Angélica chegou do estudo, a cantarolar.

— Que bom que você chegou, Maria Angélica! Estava chamando a atenção do seu irmão. Parece um maluco. Onde já viu, depois de tudo que eu passei, que nós passamos, ainda querer visitar o… Clóvis Alberto? Nem quero chamar esse homem de pai de vocês. Pai não faz o que ele fez! — e Dona Iracema puxou um choro dorido, mais para escândalo do que para sentimento.

— É pai? Digam-me: é pai? — e Dona Iracema convocou, à força, mais duas lágrimas à face covada.

Maria Angélica tocou-lhe no braço, como pedindo que desse cabo àquilo. Dona Iracema vomitou ainda alguns adjetivos, e recolheu-se em paz, consigo e com os comentários dos vizinhos.

Não quero aqui dizer que ficou em paz com as crianças, porque o nosso Câncio não era uma criança. Trazia no corpo dezesseis anos, feitos e bem feitos. Cabeça inculta, porém de belo talhe, olhos grandes de rapazola sonhador. Daqueles que perscrutam, que supõem, que advinham, que indagam, que sondam, que voam e… que querem saber tudo e acabam por não saber nada. Tudo isso sobre um corpanzil até gracioso, apesar de mal vestido. O pai é comerciante na Cidade Velha. Casara-se com Iracema Borges, filha única de um vizinho, e, depois de vinte anos de matrimônio, após dois frutos: Maria Angélica e João Câncio, resolvera “cuidar da vida, antes que eu enlouqueça”. Sim, foram estas as palavras finais no desfecho de tudo. Passara-se isto na Rua da Igreja, em 1970.

Dona Iracema ficara com a casa e as duas crianças; e mais: segundo alguns, uma gorda e polpuda pensão. Diria até que tentara uma nova vida, no entanto os comentários frequentes da vizinhança, dando notícias do ex-esposo na “vida boa das festas do bairro”, fizeram-na resvalar para os braços do rancor.

Voltemos ao jantar. Durante alguns minutos não se ouvia mais nada, a não ser o mastigar tímido de Câncio e o tinido dos talheres dos presentes. Dona Iracema enchia-se de sopa e pão; interrompia sua janta apenas para pontuar seu desabafo, entre um gole e outro de sopa, com o aposto de mais adjetivações: malandro, ingrato, desnaturado.

Câncio, cabisbaixo, comia bem devagar, não levantava os olhos da mesa, posto que estavam perdidos na lembrança de umas mãos. Sim, duas mãos fortes e peludas. Ele viera no fim da manhã, se achegara da rua, depois de confirmar com alguns vizinhos que a filha mais velha saíra para a escola e Iracema, para os compromissos da feira. Entrou e deu por Câncio na sala, olhos postos no mar, vagando soltos por sobre as ondas que se viam da janela da saleta.

— Filho?

Ele levantou os olhos e parou na altura daquelas mãos. Postas sobre os seus ombros. Umas mãos fortes, a transmitir-lhe uma sensação que até então nunca sentira.

— João Câncio, meu filho, queria que você recebesse este presente. Foi do meu pai, passou para mim e, agora, João, deve ser seu. Uma forma de nunca nos separarmos.

Quis afastar aquelas mãos… não reuniu suficiente coragem.

— Eu queria tanto que você compreendesse que… — a voz de Clóvis Alberto embargou.

Um barulho na rua pôs alvoroço entre eles. Aquelas mãos — quentes, fortes e peludas — despediram-se. Não sem antes, afagarem os cabelos crespos de Câncio, depondo um anel na palma da sua mão direita.

— Você ficou um belo rapaz, filho! Se parece muito com meu pai quando jovem. Apareça na venda! Queria tanto que você entendesse… — e saiu, após ouvir um tumulto de vozes lá fora.

— Câncio, você não acaba mais? — bradou, de repente, Dona Iracema.

Não havia remédio; João Câncio raspou do prato da memória a última gota da lembrança da visita da manhã, ainda não de todo fria; e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Não sem antes, num gesto de angústia e saudade, encostar-se à janela da sala que dava para o mar, para, dois minutos depois, novamente anunciar:

— Amanhã, vou visitar o meu pai. Não sou ingrato, não, apenas quero que todos saibam que… não sou órfão.

Um silêncio, seguido de choro e um estampido de ameaças:

— Ingrato, injusto, maluco, filho desnaturado. Onde já viu, depois de tudo que eu passei, que nós passamos, ainda querer visitar o… Clóvis Alberto?

Agarrado e acorrentado às mãos de seu pai, Câncio nem ouvia as ameaças de Dona Iracema. A irmã, Maria Angélica, a tentar pôr panos quentes.

Com pouco, João Câncio viu-se a vagar e circunvagar, tal qual uma daquelas gaivotas sobre as ondas, nas asas de um sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe machucava ao tempo em que lhe fazia bem. “Sim, não sou órfão!”

João Câncio naquela noite deitou-se cedo, para sonhar profundamente. Levando para Morfeu umas mãos — fortes, quentes, peludas e carinhosas —, entregando-lhe um anel, selando uma paz há anos esquecida. “Não, não foi um sonho!, um simples sonho! Ele veio.”