Tristeza não tem fim, felicidade sim? – Márcio Costa

Era um fim de tarde de mais um dia de trabalho num escritório encravado na cidade de Pau dos Ferros, interior do Rio Grande do Norte, num ano do início da era 2000, quando recebi pelo MSN, antigo meio de comunicação via internet, aquela tão fadada pergunta que antecede uma má notícia: “Você soube de Vovô?”

Eu me preparava para enviar minhas noticias como correspondente do Alto Oeste para mais uma edição do jornal O Mossoroense, e diante da frase não pensei duas vezes: “Luciano, arrume as coisas, vamos embora para Mossoró. Vovô morreu”.

Luciano Lellys, fotógrafo do jornal que me acompanhava, astuto observador de cenas de crime, e casos insolúveis, detentor de uma veia nata de investigador, fez valer a lógica e conteve minha reação impulsiva.

“Pergunte o que aconteceu”.

O choque imediato causado pela frase do jornalista que ocupava a redação em Mossoró impediu de fazer o básico. Confirmar a notícia. “O que houve com Vovô?” Distante 145 quilômetros, e sem saber o alvoroço que estava causando, o jornalista complementou seu pensamento em tom de euforia. “Vovô apelidou a nova jornalista”.

Numa mistura de alívio e ira, era inevitável não externar insatisfação com o episódio, mas de sorriso aberto surgiu um pensamento natural de satisfação. Ele não partiu.

O Vovô em questão não era pai da minha mãe, muito menos do meu pai. Na verdade, apesar de ser conhecido por apelidar quem aparecesse a sua volta, nunca soube ao certo por que Cosme da Rocha Freire, era conhecido por Vovô, se na época ao menos neto tinha, e sua inocência na maioria das vezes se assemelhava a de um bebê.

Ao chegar em Mossoró contei este episódio em tom de amenidade e de pronto fui revidado. “Sai pra lá HP. Ainda está muito longe de eu morrer”. HP era o apelido dado a mim, usado meses a fio sem que soubesse ao menos a origem. Não lembro de ter escutado ele falar meu nome uma única vez, mas lembro o dia em que explicou a definição do meu apelido.

HP era a abreviação invertida de Padre Huberto, o Monsenhor Huberto Bruening, catarinense que dedicou sua vida como missionário em Mossoró. Quando decidira colocar este apelido, Vovô não imaginava que durante minha adolescência, e juventude, por diversas vezes fui indagado sobre minhas relações com a igreja católica. “Você é padre?”. Se não significa nada, significa ao menos que a percepção de Vovô estava dentro da média.

Trabalhar com jornalismo nunca foi fácil. A pressão pela busca das notícias, as retaliações, ameaças e risco iminente, acabam tornando a vida de um jornalista um cenário de constante tensão, geralmente recompensado pelas histórias e experiências que se acumulam.

Conhecer Vovô foi sem dúvida uma das melhores experiências em meus 18 anos de jornal O Mossoroense. Foi através dele, o guardião do arquivo, e arquivo vivo do terceiro jornal mais antigo do País, que descobríamos a cada dia uma nova particularidade sobre a forma de se fazer jornalismo ao longo de tantas décadas, num cenário de constantes mudanças tecnológicas e sociais.

No último dia 2 de maio, ao chegar na redação do jornal O Mossoroense me deparei com a informação de que ele tinha sofrido um AVC e estava hospitalizado. Imediatamente liguei para uma de suas filhas, e após colher as informações básicas, me prontifiquei a ajudar da forma que fosse necessário. Era o mínimo a se fazer num momento onde a união de forças poderia salvar alguém tão especial.

Poucos dias antes, ele havia entrado na redação do jornal onde trabalhou por mais de 40 anos, e durante cerca de 30 minutos, colocou os assuntos em dia comigo, e outros funcionários remanescentes, com a mesma alegria de sempre, e um olhar de saudades que não conseguia esconder.

“Está na hora de acabar com estas férias e voltar a trabalhar”, disse antes dele voltar para o aconchego do lar, seu novo escritório desde a aposentadoria em 2012. Como imaginar que aquela seria a última visita num local onde era recebido como ídolo, mito e com salva de palmas? Como imaginar que aquele seria nosso último contato?

Acompanhei a evolução do quadro de saúde dele pelo telefone e de forma surpreendente sua evolução foi gradativa e rápida. Na última quinta-feira, recebi a informação de que ele receberia alta nesta sexta-feira e me preparei para visita-lo no sábado.

Com minha mãe já falecida, aprendi que visita em hospital pode ser um fator de estimulo para melhora, mas as vezes pode deixar um sentimento de frustração, impotência, um sabor as vezes amargo, e desde então evito contato com pessoas nestas condições. Por que não esperar até sua alta prevista?

Não deu. Acordei na sexta-feira com a informação de que nosso último contato estaria resumido à sua última visita a redação do jornal O Mossoroense. Vovô deixou o hospital na manhã da sexta-feira como previsto, mas ao chegar em casa, possivelmente emocionado por conseguir voltar para o convívio da sua família, foi vítima de um novo AVC.

Mesmo sem ter a intenção, não partiu sem antes voltar e motivar novos sorrisos de conforto antes da partida em definitivo.

Como não me sentir culpado? Não gosto de velórios nem de sepultamentos. Mas não podia deixar de me despedir do amigo Vovô. Na noite desta sexta-feira me dirigi ao Centro de Velório e sem falar com nenhum familiar fui direto ao local onde estava serenamente acomodado.

Seu semblante vendia paz a um preço que não há como se pagar. Foram segundos marcados pela mistura de memórias enoveladas e ao mesmo tempo tão sóbrias. Impossível segurar as lágrimas.

De repente escuto una voz. “Você é Márcio Costa: Obrigado por tudo. Ele gostava muito de você”. Levantei os olhos envoltos em lágrimas. Era Kaline, a filha com quem eu mantinha contato em busca de informações.

Não lembro o que falei, nem poderia, mas em poucos segundos surgiu sua outra filha, Kaliane. Fui confortado pelo abraço de uma pessoa que na verdade deveria está sendo confortada. Passamos a conversar sobre os últimos dias e sobre a trajetória dele no jornal.

Em poucos minutos o ambiente ganhava o contorno com a semelhança de Vovô. Ali, diante de sua presença, filhos e de sua esposa, começaram a surgir algumas risadas espontâneas de momentos proporcionados pela sua alegria inconfundível.

“Ele apelidou todo mundo no hospital. Deixou sua última mensagem em código para uma tia que acabou de aposentar, algo relacionado a um mapa. Creio que seja de pagamento. Ele pediu pra levar um rádio. O hospital autorizou e levamos. Ele ouviu todos os dias antes de voltar pra casa”, destacou Kaliane, uma de suas filhas.

E por falar em rádio, esta era uma de suas grandes paixões. Sempre relatava suas noites antenadas na Rádio Globo do Rio, divididas com o radialista Ataulfo Alves. E desta relação surgiu aquele que poderia ser seu hino de vida.

Quem conviveu com Vovô dificilmente não o viu cantarolar por diversas vezes o refrão da música “A Felicidade” de Vinicius de Morais.

“Tristeza não tem fim. Felicidade sim”.

Quando o poetinha escreveu A Felicidade, jamais poderia imaginar que o sentido de uma das mais belas canções da Bossa Nova viesse a ser colocado a prova com a mesma antítese de sua origem, por uma figura folclórica nascida numa tórrida cidade do sertão nordestino.

Nos últimos 18 anos, corriqueiramente me deparei com o refrão da música que há décadas faz sucesso nos quatro cantos do País e confesso que fora a repetição do refrão jamais tinha parado para avaliar as demais partes da música.

Adotei-a como trilha sonora para escrever este texto de despedida, e tive a certeza de que a partir de um momento normalmente marcado pela tristeza que parece sem fim, a afirmação de Vinicius de Morais passa a contar com uma pequena adaptação, mas que representa muito.

“Tristeza não tem fim…

…Felicidade sim?”

Sua partida mostra que a fatídica previsão de que a felicidade tem fim, pode sim figurar como uma dúvida a ser respondida com o tempo.

Que Deus conforte sua família, e que com o decorrer do tempo todos possam ter a certeza de que sua memória estará sempre ligada a uma felicidade eterna e sem fim, construída ao longo das histórias, e estórias, vividas e contadas no decorrer de toda a sua vida.

Vá com Deus amigo Vovô. Até um dia.