Thadeu Brandão – Os EUA, os massacres com armas de fogo e a Banalidade do Mal

Para um pai é sempre duro escrever sobre o assunto de hoje. Não é mera retórica, acredite ou não o leitor. Não consigo deixar de lembrar de Hannah Arendt quando ela expunha que o problema do mal não é a sua existência, mas sim a sua banalidade.

Os EUA vivem, quase que diariamente, registros de massacres em escolas. Massacres planejados, articulados com minucias e frutos de ódio e desprezo pela vida humana. Vida essa pulsante, que gritava de ânsia de um futuro. Vida que nós consideramos, em tese, prioritárias, as de crianças e adolescentes.

Lembro também de Slalov Zizek:

“O sujeito não inveja a posse pelo Outro do objecto investido enquanto tal, mas antes o modo como o Outro é capaz de gozar o seu objecto, e é por isso que não lhe basta roubar-lho, obtendo assim para si a posse do objecto. O seu verdadeiro alvo é destruir a aptidão/capacidade do Outro de gozar o objecto” (ZIZEK, Slavoj. Violência: Seis Notas à Margem. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Argumentos, 2008, p.84).

Nesta violência que alguns chamam de “pós-moderna”, esconde-se não mais apenas uma vontade de dominar. Desde o advento do neocolonialismo europeu, temos uma vontade de destruir. Passamos do não-reconhecimento da humanidade do Outro para a sua brutal destruição. Ultrapassam a centena de milhões as vítimas dessa lógica banal do mal.

Quando o horror nazista fora descoberto pelo mundo, atribuiu-se o horrendo crime a uma “sociopatia” coletiva alemã ou nazista. Esqueceu-se que, anteriormente, milhões de armênios, hindus, indígenas das Américas, africanos e nativos da Oceania já haviam sido sistematicamente dizimados em prol da “civilização” européia. O europeu civilizado, branco e cristão, ao propagar sua fé, economia e costumes, escravizou e dizimou em massa. Tudo fora esquecido.

Com a tragédia nazista, apontar doenças mentais ou sociopatias foi bem fácil. Difícil foi encarar o fato de que a indústria armamentista moderna possibilitou o acesso à morte rápida e fácil. Difícil foi lembrar que, de certa forma, os “outsiders” eram aqueles descartáveis que podiam ser mortos sem nenhuma preocupação. E quem matava-os? Nós mesmos.

Os EUA, nação da providência divina e do destino manifesto se revelam, há pelo menos 20 anos, como a campeã em um gênero de mortandade e tipo de crime que ouso denominar de “mass killer”, assassinos de massas.

Somente o acesso às armas de fogo explicam? Claro que não. Mas, convenhamos, é tão fácil adquirir arma de fogo nos EUA quanto comprar um celular. Em alguns estados da federação ianque, ao abrir uma conta bancária o brinde oferecido ao cliente é um rifle de caça calibre 12 ou similar. Arma com potência para derrubar um touro. O “loobie” das armas lá é extremamente forte e se esconde atrás da segunda emenda da Constituição para garantir seu lucrativo comércio.

Mas, como lembra-nos sempre o velho Weber, qualquer explicação unilateral de uma realidade é apenas isso: uma explicação unilateral. No caso, outros elementos são sempre recorrentes e, ouso dizer, soam como constantes. Nenhuma explicação é completa. Ousamos apontar, ao menos, alguns elementos.

Um deles é o fato de que os perpetradores dos massacres serem indivíduos estigmatizados dentro da comunidade em que vivem. Tratados como “outsiders”, sofreram vários tipos de rebaixamento de status e de humilhações sociais. Hoje, a moda “psicopedagógica” chamaria isso de “bulling”. Nobert Elias diria que esses indivíduos passam a ter uma “imagem negativa de um nós-imagem”, onde várias formas de delinquência seriam “respostas” a esse quadro. A escola americana hierarquiza e segrega de forma brutal. Meritocrática in extremis, não são poucos os casos de alunos que abandonam-a ou, simplesmente, buscam válvulas de escape como gangues ou grupos outsiders.

Outro fator que pode ajudar a compreendermos o problema é a forma como a própria sociedade americana encara seus problemas e conflitos. O uso de armas é acompanhado por uma verdadeira “privatização” da segurança pública e do conflito. Enfrentar conflitos individuais e coletivos através da luta não é apenas incentivado, mas ensinado sistematicamente entre as gerações. O país que mais encarcera no mundo Ocidental é também o que mais pune. Como contra-exemplo mostro o que ocorre no estado de Utah: dominado por mórmons, o pequeno estado sertanejo (ouso novamente dizer) é campeão em pacificação social! Isso mesmo! Baixíssimo índice de criminalidade e nenhum massacre em um estado onde: armas são controladas, bebidas alcóolicas são proibidas e onde um sistema de seguridade social eficiente, atrelado à uma cultura da paz são fortemente implantados.

Rica e poderosa, a sociedade americana é, em geral, segregadora e desigual. Interessante é que, apesar de tudo isso, somente UM dos massacres foi perpetrado por membro de alguma minoria (no caso, um descentente de coreanos). A absoluta maioria fora realizada por jovens brancos com claras evidências de estgmatização social.

Outros fatores se evidenciam, exigindo um entrelaçamento interdisciplinar que não ouso expôr aqui. O fato é que o massacre da semana passada não foi o primeiro e nem será o derradeiro. Seguirão outros, anualmente ou, com pequeno intervalo, de dois ou três dias, como mostra a própria mídia ianque. A escola primária possuía sistema de segurança. Não adiantou. O algoz era da comunidade. As vítimas, indefesas, não tiveram muita chance. Não descreverei aqui o horror. Os jornais e noticiários já o fizeram. Não vi nenhum. Não consigo. Desde o “Massacre do Realengo” esse tipo de imagem me traz uma agonia sem par. Escrevo como analista, mas lembrando que, como pai, meus valores estão presentes e a axiologia deste texto é exposta neste sentido.

Todos temos a aprender com tragédias como essas. A principal lição é que ela irá se repetir. Não é fruto de socio ou psicopatias individuais. Suas causas estão em uma sociedade hierarquizadora, segregacionista, consumista e que vê o Outro como alguém passível de destruição.

Eis a raiz da banalidade do Mal.