Thadeu Brandão – Mossoró em 1810 e a passagem de Henry Koster

Em seu Notas e Documentos para a História de Mossoró (5a edição. Mossoró, RN: Fundação Vingt-un Rosado, 2010), Luís da Câmara Cascudo traz uma excelente descrição da estadia – rápida e fugaz – do viajante inglês Henry Koster nos idos de 1810. Durante uma estiagem extremamente dura,  em pleno mês de dezembro, e indo para o Ceará, atravessa naquele momento o arraial de Santa Luzia, como ele descreveu: “the village of St. Luzia”. Cascudo o considera o “primeiro e melhor depoimento sociológico e etnográfico da região. (…) É a mais valiosa descrição do Mossoró nascente há 143 anos passados” (p. 39).

Cascudo escreveu seu “Notas” em 1953. Hoje, passados quase 207 anos da visita de Koster, o depoimento ainda é o mais significativo e antigo em sua validade geral. Assim, segue na íntegra os principais trechos do relato do viajante inglês naquela Mossoró colonial, um pequeno povoado de duzentos a trezentos habitantes, casas esparsas nas fazendas e sítios no arredor, uma única quadra de fronte à pequenina capela de Santa Luzia.

[Relato de Koster] “’A 7 de dezembro, às dez horas da manhã, chegamos ao arraial de Santa Luzia, que consta de duzentos ou trezentos habitantes. Foi edificado em quadrângulo tendo uma igreja e casas pequenas e baixas. Pude reencher minhas garrafas de bebidas e conseguir suprir-me de rapaduras. São tijolos de açúcar escuro ou de mel fervido até suficiente consistência ao resfriar, tornando-se desta maneira mais portáteis e menos sujeitos a liquefazer-se durante o transporte. No dia anterior à nossa chegada a Sta. Luzia, descansamos o meio-dia sob umas árvores, junto a uma casinha. Notei uma pele de onça, a onça pintada, na linguagem da região, esticada sobre as varetas de pau. Parecia ainda fresca. Entretendo conversa com o dono da casa, disse-me ele ter morto o animal a quem pertencia a pele um dia antes, ajudado por três cães. Fazia grande devastação, especialmente entre as ovelhas, escapando sempre e nunca aparecendo no mesmo local duas vezes sucessivas. Na manhã precedente o homem saíra, como era seu costume, com os três cães. A espingarda estava carregada, mas não levava munição suplementar, além de sua longa faca à cinta. Um dos cachorros farejou o jaguar e seguiu até a furna onde o animal estava. Atacado pelos cães, o jaguar matou um deles e feriu o outro por se ter aproximado. O homem disparou sua arma quando o jaguar abandonava o covil e atingira o alvo. (…) Pediu-me um pouco de pólvora, dizendo-me que outro jaguar vagava nas vizinhanças. As peles são muito valorizadas no Brasil para colxinhos de selas. Estas pela forma em que são feitas na região, exigem o colxinho, e a pele é empregada neste fim’” (p. 39-40).

População ainda praticamente agropastoril, vivendo de caça, enfrentando as onças e as intempéries do sertão bravio, vaqueiros e donos de fazendas, forjados na dureza da vida da criação. A seca era algo a se conviver e ainda, mais do que nunca, a dependência da água e dos poucos pontos que dela existiam.

[Relato de Koster] “’Nesse dia tínhamos passado o leito seco do Panema. Era o terceiro rio que atravessávamos desde nossa partida do Assú e todos nas mesmas condições. Santa Luzia está situada na margem setentrional no rio sem água, num terreno arenoso. Repousamos o meio-dia sob um teto de uma cabana ínfima. Ao centro, as cinzas de um fogo morto, um banco feito de galhos entrelaçados, eram os indícios de que fora habitada” (p. 40).

O relato abaixo, trasladado na íntegra por Cascudo, mostra o conflito aberto entre Koster, o estrangeiro e uma pretensa “autoridade” local. Uma amostra do isolamento em que se vivia na, ainda, América Portuguesa e nos rincões do sertão nordestino colonial.

[Relato de Koster] “Muitos dos moradores da povoação vieram perguntar-me por notícias de Pernambuco. Entre estes, um rapaz, cujo acento denunciava ter nascido numa das providencias do norte de Portugal, com maneiras que proclamavam a alta ideia que fazia de sua própria importância. Disse-me ter ordem do Comandante quisesse ver seu passaporte. Respondi-lhe que se o Comandante quisesse ver meu passaporte certamente enviaria um dos seus oficiais. O rapaz declarou ser o sargento do distrito. Repliquei não duvidar de que dizia a verdade, mas não lhe reconhecia autoridade, visto ele não envergar seu uniforme e aparecer-me nas roupas usuais: de camisa e ceroulas e, ajuntei que suas maneiras faziam com que lhe recusasse exibir o passaporte, fosse qual fosse a consequência. Insistiu para que lhe mostrasse. Voltei-me para Julio perguntando se ouvira o que o homem dizia. Julio respondeu: – Deixa estar, meu amo. O sargento saiu e preparamos nossas armas, para distração e assombro de alguns pacatos moradores. Vi-o, logo depois, vir em nossa direção, acompanhado de duas ou três pessoas. Gritei-lhe que se detivesse à distância sob pena de Julio disparar contra ele. Julgou mais prudente parar. De minha parte acertei ser mais lógico ir-me embora desse lugar, e saímos meia hora depois do meio-dia, com o sol ardente, não mais sendo inquietado pelo sargento’” (p. 41).

Henry Koster acreditou estar sendo visto e temido como “herege” (sendo ele inglês e, pretensamente, anglicano) – ou ‘mensageiro de Bonaparte’ e também que, tratar de forma dura e incisiva era o modo correto para com “as pessoas que adiantam lentamente na civilização”. Além do preconceito de Koster acerca do trato com os sertanejos e suas crenças na força, temos uma preocupação vital: o sobrenome Koster (“Da Costa”) pode sinalizar uma ascendência judaica portuguesa migrante (século XVI) e, ainda em face da existência da Inquisição, o real medo do viajante.

[Relato de Koster] “’O aspecto geral da Capitania do Rio Grande do Norte é que ela é de fertilidade medíocre ao sul de Natal e estéril ao norte, excetuando as margens e os arredores do Potengi. Passamos a fazenda da  Ilha (the estate of ilha), distante de Sta. Luzia légua e meia, e prosseguindo, depois de nos abastecermos d’água, quatro léguas adiante, até uma casa incompleta e desabitada. O proprietário a começara a construir durante as chuvas do inverno passado, e continuou a obra até que as águas se esgotassem. A casa era vasta, coberta de telhas, mas as paredes tinham apenas os enxameis. Era intenção dessa pessoa estabelecer até uma fazenda, mas a falta das fontes d’água teria dissuadido o propósito primitivo. Toda a região, entre a Ilha e Tibau, onde fizemos descanso no outro dia, pela hora do calor, estava sem água, numa distância de dez léguas” (p. 42).

A descrição geográfica, que praticamente segue inalterada até hoje, é vitalizada pela descrição do encontro do sertão com o mar:

[Relato de Koster] “’(…) são secos e o solo, no verão, é sumamente duro, escuro e não brotando relva, e pelas suas margens nascem plantas semelhantes às das praias do mar. A água que se obtém cavando o solo é completamente salobra. (…) o monte de areia, chamado Tibau, junto do qual se vê o mar’” (p. 43).

Cascudo finaliza descrevendo o Mossoró de 1810. Além de seus “duzentos e trezentos moradores e espalhados em fazendas ao redor da igrejinha que presidia o quadro da rua de casas pequenas e baixas”. O mais salutar: “quem seria o Comandante do Distrito ou da Ribeira de Mossoró neste 1810? Creio tratar-se de José de Góes Nogueira [1750-1836]” (p. 45).

No retorno, Koster regressou de Fortaleza em janeiro de 1810, encontrando os rios de Mossoró e Upanema com água. A paisagem já mudada verdecia. Com ele, trazia a correspondência oficial que lhe dava credenciais e direitos do Correio Real Português. Desta vez o encontro fora diferente. “No arraial notou que o povo se aglomerara e julgou repetir-se a visita do sargento. Mostrou discretamente o saco vermelho e notou que a assistência desaparecera” (p. 46).

 

Diante da assertiva do Poder Real, as autoridades locais, desconfiadíssimas, assentiram e se esvaíram. Neste ínterim, Cascudo fala de uma pretensa “identidade” mossoroense nesses idos de 1810. Duvido muito que isso existisse naquele momento histórico. Mas alguns de seus elementos principais, visivelmente, estavam todos lá.