Thadeu Brandão – Militarização da Segurança Pública no Brasil

Uma análise sistemática e um pouco mais cuidadosa do cotidiano da segurança pública no Brasil revelará um dado preocupante: estamos diante de um gradiente aumento da inserção das Forças Armadas nessa esfera. Principalmente nos últimos 10 anos. Mais do que uma “necessidade”, estamos diante de um dilema que ameaça nossa frágil democracia e estado de direito.

Lembremos que o Brasil, há menos de 30 anos, saía de um ciclo de duas décadas de regime autoritário. Instituições, ações coletivas e indivíduos foram submetidos a uma logica antidemocrática que não é passível de redução de uma hora para outra. Há quem diga que apenas patinamos em nossa “redemocratização”, com a Carta de 1988 e outros pequenos avanços. Estaríamos em uma espécie de “semidemocracia”, uma situação em que uma democracia “imperfeita” caminha rumo a uma democracia com sólidas e responsivas instituições. Não se verifica que nossa democracia caminha, efetivamente, para a superação de seus traços autoritários mais marcantes. Com o passar do tempo, ela parece correr o risco de se tornar um projeto de manutenção de uma mera democracia eleitoral. Isto é, Estado se mantém autoritário mesmo com a existência de uma “democracia de procedimentos”.

Por quê digo isso? Porque no Brasil, os militares efetivamente deixaram o governo, mas não o poder. As Forças Armadas tupiniquins continuam a ser um ator político relevante. Especialmente nas atividades de segurança pública.

Primeiramente, é preciso lembrar que o comportamento militar é politicamente autônomo quando os militares têm objetivos próprios, que podem ou não coincidir com os interesses de outros grupos políticos, e quando possuem capacidade institucional de executá-los, em detrimento de regras democráticas que proíbam a execução desses objetivos. O governo tem autoridade limitada para gerar novas políticas, pois tem de dividir seu poder com as Forças Armadas.

Desta forma, as Forças Armadas são verdadeiros “enclaves” dentro do Estado Brasileiro. São instituições que possuem uma competência específica ou uma série de competências autônomas, praticamente imune aos checks and balances da sociedade e que, por isso mesmo, funcionam segundo regras autônomas diferentes daquelas que regem as instituições submetidas ao crivo democrático. No Brasil, arrisco-me a dizer,  as Forças Armadas aparecem como enclaves autoritários.

Isto porque, nos regimes democráticos, as competências institucionais entre polícia e exército, por exemplo, estão nitidamente separadas. No Brasil, todavia, a política de segurança pública vem sendo crescentemente militarizada. Isso seria um dos indicadores de que possuímos um governo, mas não, essencialmente, um regime democrático. Compreenda-se, aqui, por militarização o uso de modelos, conceitos, doutrinas, procedimentos e pessoal militares em atividades de natureza civil, entre elas a segurança pública.

Historicamente, a construção de um certo “pacto informal” entre civis e militares permitiu a volta da democracia eleitoral em troca da manutenção desses enclaves autoritários dentro do “aparelho de Estado”. Assim, os conservadores não perderam o controle da agenda política do país. Além disso, em caso de alguma ameaça, o sistema repressivo pode ser reativado, pela via constitucional, garantindo a legalidade do uso da violência.

O ponto nodal da questão é que nossas polícias militares continuam a ser “forças auxiliares do Exército”. Portanto, se em outros países a  força de polícia possui estrutura militar, mas não é policia militar, no Brasil o que observamos é uma estrutura militar fazendo as vias de policia. Ou seja, mais tropa do que policia na manutenção da ordem pública.

“No mundo democrático as competências institucionais entre polícia e exército são claramente diferenciadas. Policia lida com adversários; Exército com o inimigo. Policia procura resolver conflitos de natureza social; Exército defende a soberania do país contra o inimigo que deve ser aniquilado. Por isso mesmo as doutrinas, armamento, instrução e treinamento da Polícia e do Exército são distintos. No Brasil, essas competências estão imbricadas. E o que é pior: cada vez mais o Exército se confunde com a atividade policial” (ZAVERUCHA, 2007, p. 32).

Outro ponto central, para reforçar o argumento: no Brasil, as polícias militares são obrigadas, por lei, a passar as informações coletadas através do chamado “canal técnico” ao comandante local (regional) do Exército. Este comandante possui informações privilegiadas sobre o governador de estado, por exemplo, pondo em xeque o princípio federativo. Para completar, não há qualquer controle das assembléias legislativas sobre o serviço de inteligência das polícias militares (o chamado P-2). E, ainda, os policiais militares continuam trabalhando em quartéis do exército à disposição do mencionado sistema de informações.
Também é de se destacar que, teoricamente, cada brasileiro do sexo masculino é reservista obrigatório das Forças Armadas. Lembremos que o fato de as forças policiais serem auxiliares do Exército é comum nos regimes autoritários (as SS e a Gestapo na Alemanha nazista cumpriam esse papel, além das SA). Nas democracias, ao contrário, somente em período de guerra é que as forças policiais tornam-se forças auxiliares do Exército e demais Forças Armadas. Em tempo de paz, o Exército é que passa a ser reserva da polícia, indo em sua ajuda quando esta não consegue debelar certos distúrbios sociais. Isto posto, o Exército, quando intervém, o faz na qualidade de representante do poder político, e nunca como se estivesse em guerra.

Mas não é isto que ocorre no Brasil. Estaria exagerando? Não. O probema é que nos dias atuais, está consolidada uma verdadeira militarização da área civil de segurança, pois a Polícia Militar encarrega-se do policiamento ostensivo e do trânsito, o Corpo de Bombeiros cuida de incêndios e acidentes em geral, e a Casa Militar Estadual responsabiliza-se pela segurança governamental e pelo comando do sistema de defesa civil (enchentes, deslizamentos de morros, etc).

“Lógica à parte, são os militares quem têm o poder constitucional de garantir o funcionamento do Executivo, Legislativo e Judiciário, a lei e a ordem quando deveria ser o reverso. Assim, as Forças Armadas são baluartes da lei e da ordem definidas por elas mesmas, não importando a opinião do presidente da República ou do Congresso Nacional. Logo, cabe às Forças Armadas o poder soberano e constitucional de suspender a validade do ordenamento jurídico, colocando-se legalmente fora da lei” (ZAVERUCHA, 2007, p. 38-39).

Assim, Forças Armadas e a policia são braços armados do Estado. Para que funcionem democraticamente é condição necessária que se constitua um estado de direito e instituições sólidas de controle e regulação, sob controle das organizações sociais e da sociedade civil, ao menos de forma participativa.

Diante do vácuo institucional, as Forças Armadas, em especial o Exército, vão ocupando gradativamente novos espaços, principalmente na área de segurança pública, a convite do próprio poder civil. Na falta de “inimigos externos”, inicia-se a retomada da visão do “inimigo interno”. Ao mesmo tempo, com a crescente descrença do Exército (e das demais Armas) nas policias militares ou nas outras policias e com o agravamento da crise da segurança pública, em especial nos grandes centros urbanos brasileiros, observa-se uma certa banalização do emprego das Forças Armadas em ações de segurança pública.

Foi durante as gestões dos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, que foram tomadas medidas no sentido de regulamentar juridicamente o exercício do poder de polícia ostensiva do Exército Brasileiro na manutenção da “ordem pública”. Fernando Henrique deu o pontapé inicial, através do Decreto no 3.897, de 24 de agosto de 2001, fixou as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem (Poder de policia para o Exército, como por exemplo no caso: invasão do complexo do Alemão, Rio de Janeiro, em 2010). Antes, as Forças Armadas discutiam se as tropas federais deveriam agir em ações de segurança urbana. Durante o governo Lula, discutiu-se como deveriam ser elas dispostas em formação de combate. Para isso já existe um projeto de intervenção urbana: o plano-padrão de ação para garantia da lei e da ordem (PPA/GLO). No campo interno, a inteligência militar volta-se para a produção de conhecimentos ligados ao emprego da força na garantia da lei e da ordem.

“O linguajar usado pelo Exército para ações GLO é o de guerra. A força terrestre, em vez de executar uma ação de segurança pública, é preparada para combater as forças adversas, que podem ser bandidos ou integrantes de movimentos sociais. As ações e medidas de GLO podem ser preventivas ou operativas. As ações e medidas preventivas têm caráter permanente e, normalmente, restringem-se às atividades de inteligência e comunicação social. Portanto, os movimentos sociais estão sob constante vigilância da inteligência do exército” (ZAVERUCHA, 2007, p. 43).

Segundo o Ministério da Defesa, o Haiti vem servindo como treinamento para a possível utilização dessas tropas, no Rio de Janeiro, no combate à criminalidade (o que já vem sendo demonstrado nas ocupações das comunidades e a “desocupação” dos grupos criminosos paea instalação posterior das UPP’s – Unidades de Polícia Pacificadoras). Ao mesmo tempo, as Forças Armadas já vêm sendo diretamente afetadas, estando à mercê dos ataques de bandidos às unidades castrenses na capital haitiana. Tanto é que, dos 1.200 homens enviados ao Haiti como parte do primeiro contingente, cerca de 750 são oriundos do Rio Grande do Sul, para não desfalcar as unidades militares do Rio de Janeiro.

Nos EUA, para efeito comparativo, quando tropas do exército intervieram nos distúrbios urbanos de Los Angeles, no famoso caso Rodney King, os militares federais sabiam que possíveis ilícitos cometidos seriam julgados por tribunais civis. Era um modo de deixar claro que eles estavam agindo não contra inimigos, mas como força reserva da policia americana. No Brasil, a Lei Complementar no 177, §7o , todavia, seguiu outro caminho. Embora as Forças Armadas estejam servindo em ação de segurança pública, ou seja, contra brasileiros em vez de inimigos, sua ação é considerada “atividade militar”.

Um decreto redigido no ápice da repressão do regime militar está sendo usado para tipificar o crime militar que vier a ser cometido por militares em operação de garantia da lei e da ordem. O que inclui possíveis protestos sociais. Eis o dilema e preocupação que esbocei no início dessa discussão.

Duas tendências contraditórias caracterizam o sistema político brasileiro. Por um lado, há uma crescente mobilização da sociedade civil em busca de maior democratização. Isso é percebido nos movimentos sociais e sua ampliação. Mas, por outro lado, há um incremento contínuo da presença do Exército em atividades de segurança pública. Ouso dizer que a elite política não almeja a presença direta dos militares na grande política. Contudo, não quer se desvincular da proteção militar e apóia sua presença como fator de poder. Com o agravamento das questões de segurança pública, como dito anteriormente,  vem crescendo a prática do “hobbesianismo social”.

Concluindo, nossas elites civis e militares pouco acreditam na possibilidade de futura consolidação da nossa jovem e já combalida democracia. Não confiam numa possível cooperação entre os atores individuais e coletivos em torno de um projeto democrático que garantiria a propriedade privada e o mercado. Procuram se precaver utilizando cada vez mais o Exército em áreas de atuação civil, como a segurança pública.

O arranjo institucional pós 1988 também vem conferindo crescentes poderes aos militares, em detrimento das policias. Observamos cada vez mais as Forças Armadas passarem a decidir quais são as ameaças ao sistema político, em vez do presidente ou Congresso Nacional. Com isso, aumenta a possibilidade do uso arbitrário da violência, possibilitando que “situações de exceção” surjam com mais freqüência.

Com mais poderes coercitivos, os militares estarão mais tentados a fazer uso dessa força em proveito próprio, a expensas da sociedade, demandando novas espaços de poder. Além disso, se expõe as tropas federais ao contato direto com representantes do narcotráfico, o que pode levar a uma quebra de hierarquia dentro das Forças Armadas cujas conseqüências não é difícil imaginar.

Citações e referências:

ZAVERUCHA, Jorge. A crescente inserção das Forças Armadas na segurança pública. IN: CRUZ, Marcus Vinicius Gonçalves da, BATITUCCI, Eduardo Cerqueira (Orgs.). Homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.