Thadeu Brandão – Homicídios e vingança: um casamento ainda sólido no Sertão

Quando tratamos do tema da vingança e do homicídio motivado por ela no Nordeste do Brasil, não se pode incutir no erro de que o assunto esteja ligado apenas ao passado colonial ou imperial, ou mesmo, aos espaços rurais e ainda não “civilizados”. A violência homicida motivada pela vingança, pela lavagem da honra, seja esta individual ou grupal sempre foi marca presente, seja no sertão ou no litoral.

Em culturas onde existe uma certa tradição de “tomar satisfações”, como mostrou Nobert Elias em os “Alemães”, uma certa admiração suscitada pelo desforço direto de afrontas pela via da vingança se apresenta. Quando não é a vingança em si, a sociedade constrói mecanismos de regulação como o duelo, também violentos, mas cujas consequências para os envolvidos e suas famílias e grupos são mais controladas. Isso ocorreu na Alemanha Guilhermina, do velho II Reich de fins do século XIX. Para Elias:

“Duelos e brigas são guerras privadas, desfechos de conflitos. Mas o duelo era um tipo altamente formalizado de violência, infringindo o monopólio estatal de violência, e reservado em primeiro lugar para a nobreza, sobretudo os oficiais, e depois também os civis de classe média e status suficientemente elevado” (1997, p. 72).

Um elemento sociológico presente, portanto, e passível de servir como elemento explicador no caso esboçado é a quebra de determinado status e noção de honra, tão grave que deve ser punida com sangue e morte. Certos membros de determinado estrato social estão provavelmente cônscios, ao menos vagamente, de que instituições características como o duelo ou mesmo a vingança desempenham uma função específica em sua existência social como grupo, no que se refere à manutenção de seu status ou honra.

Como mostrou Pernambucano de Mello:

“(…) a violência empregada na satisfação de uma ideal de vingança, em que o gesto de desafronta é visto como um direito e até mesmo um dever do afrontado, de sua família e de amigos mais chegados. (…) Uma vez canalizada para a violência, a energia humana permanece gerando violência ainda por  muito tempo, mesmo quando os inimigos naturais foram responsáveis pelo seu surgimento já não existam. Quando isto ocorre, p que se dá é uma reorientação do sentido dessa violência em busca de rumo diverso e não o seu amortecimento súbito.” (2011, p.63-64).

Se essa violência foi oriunda do próprio processo de colonização, este por si só, dizimador e escravizador, construtor de uma valorização significativa da honra individual e do justiçamento privado, principalmente em um período onde as teias do Estado eram bem mais fluidas e distantes, há pouco o que se comentar. A questão que se impõe é sobre a sua permanência.

Porquê assistimos alarmados milhares de homicídios anuais motivados pela vingança pessoal? Não apenas a vingança do tráfico de drogas, este totalmente à margem do ordenamento jurídico e utilizador da violência como meio de imposição de sua práxis. Referimo-nos à prática de resolução de conflitos por meio “da bala” ou da “lambedeira” (faca peixeira), onde brigas de bares, discussões de trânsito ou qualquer outro conflito é resolvido com um homicídio. Este, motivará outros mais, quando o ciclo da vingança se abre, com o resultado de guerras familiares e destruições que duram décadas. O caso exemplar dos “Carneiros” e dos “Simião” de Caraúbas, RN, é um dos mais recentes e conhecidos. Mas, infelizmente, apenas mais um.

Mesmo quando a ação repressora oficial está presente e quando os processos violentos empregados no exercício direto das próprias causas passam a ser vistos como processos censuráveis, permanece o uso da violência privada. A diferença hodierna para o período colonial e até o Império, é que hoje, o emprego privado da violência, mesmo sem a perder o seu cunho tradicional de “coisa legítima”, se confunde com a criminalidade, socialmente execrável e que deve ser combatida. O vingador não é mais um homem honrado, mas um bandido a ser preso e condenado. Será?

Para quem acha que há novidade nos conflitos familiares:

“As notícias de conflito entre famílias em nossa história remontam ao século XVII, caracterizando entre os domínios rurais “uma espécie de estado de guerra permanente e generalizado”, cuja face mais ostensiva vinha à luz através de um regime de “mútua pilhagem de gado e alimentos, de incêndio e destruição de instalações, de aliciamento de escravos e couto de negros e facínoras, fugidos à polícia e à justiça” (MELLO, 2011, p.366).

Uma vez estabelecido o estado de guerra aberto, a lógica, como na Romênia, Irlanda ou Sul dos EUA no século XIX se impõe: uma morte cá outra morte lá. Um ciclo de sangue e ódio que não se dissipa, apenas quando a destruição de um dos lados ou sua bancarrota total. Mais do que fenômeno local, a vingança é fenômeno antropossociológico, aparecendo aqui e ali, onde o Estado não atingia seus tentáculos e onde a justiça racional-legal e burocrática inexistia.

Mais do que arcaísmos que permanecem, esses fenômenos se reciclam. Não é surpresa que, mesmo hoje, o símbolo “cultural turístico” mais presente da Cidade de Mossoró seja o Cangaceiro Lampião, bandido sertanejo, assassino contumaz, estuprador, saqueador e bandoleiro. Numa cidade onde o homicídio motivado por vingança atinge níveis alarmantes, é um importante indicador significativo essa referência. Fala sobre a valentia, a presença ainda da ídeia de que a honra ultrajada deve ser lavada com sangue. Ainda.

Citações

ELIAS, Nobert. Os Alemães: A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Editado por Michael Schröter. Tradução de Álvaro Cabral. Revisão técnica de Andrea Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

MELLO, Frederico Pernambucano. Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. Prefácio de Gilberto Freyre. 5.ed. São Paulo: A Girafa, 2011.