Thadeu Brandão – Governo Temer: entre a ilegitimidade e a crise continuada

Em artigo anterior sobre o impeachment de Dilma e Collor, tracei algumas comparações. Trago novamente parte dele, traçando, porém, novas conclusões e reflexões sobre o início do governo Temer.  Vamos aos pontos.

O período histórico que se convencionou denominar de “Nova República”, surgida dos escombros da Ditadura Militar e com o processo de redemocratização, notadamente com a eleição indireta de Tancredo Neves e a posse de José Sarney (1985), já pode ser considerado o mais longevo período de democracia de massas da nossa vivência como povo e nação. Já são 31 anos, muito além dos 19 do período de 1945-1964. Não podemos contar o período denominado de República Velha (1889-1930) como de democracia de massas, dado à pequena participação popular e o caráter (mesmo para uma “democracia burguesa”) restrito da participação.

Nestes 31 anos, seis presidentes passaram pelo Palácio do Planalto e chefiaram a República e o Governo: Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Dilma. Quatro deles eleitos diretamente e como cabeças de chapa. Dois deles sofreram processos de impeachment. Collor e Dilma entram para a história como duas figuras ímpares e primeiras em muitas coisas (presidente civil eleito pós-regime militar, primeira mulher presidenta etc.). Também únicos a sofrerem o remédio amargo dos presidencialismos: o impeachment.

Longe de perscrutar a justeza ou não do processo, tanto no caso de Collor quanto no de Dilma, aponto a necessidade de se debruças sobre as bases sociais, políticas, econômicas e culturais que permitiram tais ocorrências. Não cabe ao cientista social o gozo diletantista do jornalista, como apontou Max Weber. Debruçar sobre causalidades históricas e sociais leva-nos à necessidade de deixar de lado os brios morais e os juízos de valor.

O sociólogo Sallum Jr., em seu importante estudo sobre o impeachment de Fernando Collor (2015), aponta que certa ineficiência das políticas governamentais, pelo menos em relação aos propósitos proclamados na campanha, a recessão e o mal-estar social que provocaram, fragilizou o alicerce de legitimidade política do presidente, fertilizando o terreno para a oposição política. Além disso:

“Desde a formação de seu ministério, Collor agiu como se sua escolha pela maioria do eleitorado concedesse a ele o poder exclusivo sobre o Executivo conquistado e proeminência sobre os demais poderes, despreocupando-se em construir maioria orgânica, baseada em coalizão partidária, para aprovar no Parlamento as matérias legais de interesse do governo. Contentou-se em obter maiorias ad hoc, projeto a projeto, votação a votação. (…) ao invés de arrebanhar forças partidárias para compor maioria parlamentar concedendo a elas, em contrapartida, participação nos recursos do Executivo, o presidente Collor optou por mantê-los sob seu controle direto, ou de seus auxiliares, reforçando sua posição mediante campanha contínua de marketing político que destacava sua personalidade, acentuava suas qualidades messiânicas e confrontava adversários” (SALLUM JR., 2015, p. 394).

Sallum argumenta que esta forma de governar, que denotava certa “encarnação da utopia presidencial plebiscitária”, só foi bem-sucedida enquanto Collor teve legitimidade em alto grau por combater um inimigo interno, “a hiperinflação, que ameaçava a sobrevivência material da grande maioria dos brasileiros”. Dado o custo político dos projetos apresentados e a falta latente de compromisso do governo com os partidos de centro e, mesmo, com os conservadores, o Congresso simplesmente “tirou de sua agenda os projetos governamentais”.

“(…) o governo mantinha um acentuado voluntarismo que se expressava na aguda desproporção entre o projeto reformista e possibilidades políticas de sua realização. Suas propostas liberalizantes não se sustentavam em uma avaliação realista sobre as possibilidades de encontrarem assentimento entre as forças de direita e de centro, quer dizer, em uma avaliação que levasse o Executivo a reduzir, por concessões aos partidos e parlamentares, o alto custo político-eleitoral das reformas que propunha. A orientação do Executivo sinalizava claramente a desconsideração pelos interesses políticos sediados no Congresso e, por esta via, a incapacidade do presidente liderar a maioria das forças políticas em alguma direção. Os sinais mencionados de deterioração da autoridade do Executivo diante do Congresso não foram, porém, suficientes para que o presidente alterasse sua posição política” (SALLUM JR., 2015, p. 398-399).

Com o passar do tempo, a opinião pública tornara-se francamente negativa em relação ao governo, e um conjunto, ainda pequeno, de atores coletivos com presença na esfera pública, representando diferentes segmentos sociais, como trabalhadores assalariados, classe média profissional e uma reduzida fração do pequeno empresariado, tentava articular-se em favor da oposição de centro e de esquerda e contra o governo. Dentro desse escopo, Collor foi atingido por acusações de seu irmão em duas entrevistas publicadas, em maio, pela revista Veja. Pedro Collor acusou o irmão de ser o responsável e maior beneficiário das atividades suspeitas do seu tesoureiro de campanha, Paulo César Farias. Agora, a suspeita de corrupção não atingia apenas auxiliares que o presidente poderia afastar; atingia ele mesmo, acusado de ser o verdadeiro responsável pelo esquema de corrupção organizado por “PC Farias”.

O surgimento do Movimento pela Ética na Política (MEP) e a liderança deste e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) permitiram uma articulação de forças e um protagonismo necessário para a contestação do governo. Cumpriu função-chave no processo, pela construção do quadro interpretativo que orientou e legitimou a luta da oposição contra o governo. Necessário dizer que esse quadro deu amplitude política ao combate à corrupção, associando-a a luta “pela ética na política”,

“à democracia almejada para o Brasil, um regime de governo não autoritário, com maior equilíbrio entre os poderes do Estado e promotor da expansão plena da cidadania. Esta associação entre ética e democracia não era trivial, pois rompia a vinculação popular usual entre política e corrupção. Construindo esse quadro interpretativo, disseminado pela imprensa, o MEP deu direção cultural ao movimento em favor do impeachment, cuja direção política foi assumida, desde o início, pela coalizão partidária de centro-esquerda” (SALLUM JR., 2015, p. 403-404).

As mobilizações de massa, articuladas também por vários movimentos sociais e também pelos partidos políticos tomam as ruas, permitindo uma solidez maior ao pedido de impeachment por parte do Congresso. O mesmo se deu em setembro de 1992, com a saída do presidente que renunciou logo depois.

Enquanto o processo se desenrolava, importante sublinhar a construção negociada do futuro governo do vice-presidente Itamar Franco que mostrou, para a maioria dos políticos profissionais, as vantagens da aprovação do impeachment. “O governo Itamar seria, desde logo, um governo de coalizão, negociado com as direções dos partidos políticos” (SALLUM JR., 2015, p. 405). Diferentemente do que havia ocorrido na Era Collor, Itamar valorizaria o Congresso, que fora colocado à margem naquele período. E a coalizão não incluiria apenas os partidos condutores do processo de impeachment; incorporaria também aqueles, conservadores, que a ela se juntaram ao longo do processo.

Se as similitudes e divergências entre os dois processos de impeachment, no que se referem ao contexto social, político e econômico não estão latentes, cumpre a nós agora apontá-las. Primeiramente, o quadro econômico dos dois momentos históricos é bem divergente. Com Collor, o Brasil patinava num quadro de hiperinflação e queda drástica do PIB (Produto Interno Bruto), além de um cenário de crise industrial e desemprego que fechavam o ciclo da década conhecida como “perdida” (1980). No caso de Dilma, os erros macroeconômicos na condução das políticas pela presidenta não foram tão danosos quanto o apontado anteriormente, embora no comparativo com o período de crescimento do governo Lula (2003-2010), o desemprego e uma inflação anual de dois dígitos tenha sido surpreendente para uma geração que não conheceu tais mazelas quanto a que viveu as décadas pretéritas.

Em segundo lugar, há uma pertinente verossimilhança entre Dilma e Collor no que tange à sua forma de relacionamento e tratamento do Congresso Nacional. Tanto o voluntarismo político quanto certo “desprezo” no trato político marcaram os dois presidentes, seja no que tange às concessões aos partidos políticos ou mesmo quanto às definições econômicas e políticas do rumo do governo. Aliado a um quadro de desgaste econômico, esse fator foi, em minha modesta análise, o elemento mais pertinente.

Em terceiro e último lugar, o ambiente cultural e político em torno da “luta contra a corrupção”, apanágio das classes médias, ampliado e absorvido por parte das novas classes trabalhadoras que emergiram no lulismo (SINGER, 2012), foi um fator não decisivo, mas fortalecedor do processo de impeachment tanto de Collor quanto no de Dilma. Embora, diferenciemos que: (1) no de Collor, o quadro de desgaste atingia o próprio presidente, diferentemente no caso de Dilma; (2) no caso desta, seu partido, o PT, é o grande alvo das acusações de corrupção e das grandes operações da justiça federal e da polícia, o que não havia (nem estrutura) no período de Collor; (3) no processo de impeachment de Collor, quase unanimidade nacional, não houve praticamente apoios ao presidente, o que, com Dilma, já é diferente.

Consumado o ato na Câmara e no Senado, as incertezas se mantêm.  A gestão Michel Temer (PMDB), é um verdadeiro poço de incertezas quanto à sua estabilidade e manutenção.  Tanto quanto à própria legitimidade do processo conduzido pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB) acusado de corrupção e réu de vários processos, o que, por si só, já deslegitima o Impeachment, quanto ao julgamento no Senado, que demonstrou não haver critérios técnicos e jurídicos para uma acusação fundamentada. No máximo, elementos circunstanciais que, aplicados a rigor, defenestraria maior parte dos governadores de estado. No comparativo que fiz anteriormente, o governo Itamar pôde-se formar uma ampla coalizão nacional de apoio, o que não ocorrerá com o governo Temer. Sofrendo pressões de todos os lados, o ex-vice dificilmente conseguirá executar quaisquer das medidas draconianas já anunciada pela própria grande mídia docilizada pelo poder.

A reforma trabalhista (leia-se: flexibilização in extremis da CLT) e a reforma da previdência serão os “suportes” da pauta econômica e reformistas. Se nem FHC e nem Lula, com maiorias folgadas e força política conseguiram, o que se dirá de um governo sem legitimidade suficiente e, pior, sem o apoio plebiscitário de uma eleição? Além de lidar com um Congresso dividido, Temes lidará com aliados que só olham para 2018 com volúpia e fome tenaz. O PSDB quer emplacar Alckim ou Aécio. Tanto um quanto o outro possuem dificuldades imensas. Medidas impopulares, cujas bonanças só serão vistas no futuro (bem distante) não cabem para uma eleição tão próxima. O rompimento com os tucanos está a vista. E bem pertinho.

O PT, após 13 anos de poder, volta à oposição. Depois de um longo período de esfriamento dos movimentos sociais, dos sindicatos “pelegados” até a última ratio, aos poucos despontam resistências aqui e ali. Mas a grande espada de Damôcles para a população é a inflação e o desemprego. A primeira parece querer dar folga. A segunda, devido aos remédios inflacionários e ao arrocho anunciado, será uma permanente na pequena Era Temer. Depois de uma década de alto nível de empregabilidade e crescimento da renda, esse fator será crucial. Quem não perceber isso, será alijado do jogo político. Por isso, capitalizar politicamente essa demanda será fácil.

Difícil mesmo será manter a Operação Lava Jato ativa. Há quem diga que, depois de tornar Lula réu e inelegível, ela terá suprido seu papel e será finalizada. Os Cunhas, Renans, Aécios, Agripinos e tantos outros? Ficarão onde estão, como donos do poder. Onde sempre estiveram e sempre estarão. Restará a lembrança de uma novidade histórica neste processo: saem os militares como agentes ativos das mudanças de poder; entram os juízes e promotores, novos “tenentes” das “mudanças” (que mudam para nunca mudar) da Res(pública) Tupiniquim.

A crise política continuará. Os contornos estão dados, queira a grande mídia mostrar diferente ou não.

Obras Citadas

SALLUM JR., Brasilio. O impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma crise. São Paulo: Editora 34, 2015.

SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.