Thadeu Brandão – EUA e a História do Narcotráfico

A história do narcotráfico, ou seja, a história da proibição às drogas e do crime organizado que se forma em torno dessas substâncias tornadas ilegais passa, de certa maneira por, necessariamente, ter de reparar nas forças que moldam o tráfico de drogas e nos poderes que buscam reprimi-lo.

Em toda  discussão sobre o tema, percebe-se que há uma evitação nas discussões fármaco-químicas, assu­mindo-se, assim, que a motivação para o uso de uma droga não é sua composição em si, mas as sensações que tende a provocar.

Segundo Rodrigues, o sistema médico internacional:

“divide as drogas que agem sobre o sistema nervo­so central causando mudanças de comportamento ou de percepção em três grupos: as apaziguado­ras, as estimulantes e as alucinógenas. Drogas apaziguadoras são o ópio e derivados (morfina, heroína, codeína, metadona), os opiáceos sintéticos (barbitúricos), clorofórmio, éter e o álcool. Es­ses compostos têm propriedades analgésicas e anestésicas, provocam sono e torpor e podem criar hábito ou adição. As estimulantes agem como excitantes, dando disposição e ânimo. Não causam adição, ainda que possam criar certas relações psico­lógicas de dependências. São drogas estimulantes o mate, a folha de coca, o café, o chocolate, o tabaco (estimulantes vegetais), a cocaína (ou cloridrato de coca produzido a partir do processamento quí­mico das folhas de coca), o crack, as anfetaminas e a cafeína. Por fim, alucinógenas são as que oferecem poucos riscos à saúde (apresentam baixos teo­res de toxicidade e não causam adição) e produ­zem experiências sensoriais e visionárias mais ou menos poderosas. São drogas alucinógenas subs­tâncias quimicamente tão distintas quanto o MDMA ou ecstasy, maconha (ou seu princípio ativo o THC), skunk (maconha geneticamente manipulada com grande concentração de THC), haxixe, mescalina, LSD ou ácido lisérgico, ayahuasca, iboga, kawa, peyote, entre outras.” (RODRIGUES, 2003, p.19-20).

Historicamente, foi em 1906, o primeiro instituto jurídico vindo do Food and Drug Act (Lei Federal sobre Alimentos e Drogas) nos EUA. Essa lei não instituía a proibição efetiva de qualquer droga psicoativa, mas regulamentava sua produ­ção e venda: exigia. Ou seja, a dita lei inaugurava a inter­venção governamental num campo ainda inexistente.

Finalmente, em 1909, por incentivo do governo estadunidense, foi organizada  uma conferência em Xangai que reuniu as potências coloniais da época (Inglater­ra, Alemanha, França, Holanda e Portugal), repre­sentantes do imperador Chinês e dos EUA para discutir limites à produção e ao comércio de ópio e seus derivados. “Mesmo contrariados, os Estados euro­peus aceitaram formalmente a proposta do gover­no dos Estados Unidos de restringir o negócio do ópio apenas para prover as necessidades mundiais para uso médico dos opiáceos” (RODRIGUES, 2003, p.28).

Desta feita, a Confe­rência de Xangai inaugura a prática de encontros diplomáticos internacionais para o controle de drogas psicoativas motivados basicamente pelo ímpeto proibicionista do governo dos Estados Unidos. Já em 1912, tem lugar em Haia, na Holanda, uma nova conferência, mais uma vez incentivada pelos EUA e que redundou num docu­mento de maior impacto e mais explícito na exigência em se limitar a produção e venda de ópio, opiáceos e também cocaína.

Finalmente, temos em 1914, também nos EUA, de iniciativa do Harrison Narcotic Act, lei mais complexa e severa que os acordos internacionais já assinados e que investia na proibição explícita de qualquer uso de psicoativos considerado sem finalidades médicas.

Mesmo assim, as drogas psicoativas não deixaram de fazer parte do cotidiano dos norte-americanos, porém a relação dos indivíduos comas drogas regulamenta­das pela Lei Harrison mudou sensivelmente: o acesso só seria possível por meio de uma receita emitida por um médico. O consumo, apesar da lei, não se restringiu aos tratamentos médicos, persistindo uso hedonistas e a automedicação. Todo esse volume de transações e de usos de psicoativos passou a ser, a partir de então, ilícito. Estava legalmente inaugurado o mercado ilícito de drogas; delineavam-se os primeiros passos da economia do tráfico de drogas.

Finalmente, segundo Rodrigues:

“A proibição das drogas psicoativas, aliada aos estereótipos que as vinculavam às elasses conside­radas perigosas por seus hábitos e sua pobreza, colocava sob suspeita toda essa faixa da popula­ção que costuma ser vigiada e controlada pelos apara­tos repressivos do Estado. (…) os grupos percebidos como anormais passaram a ser alvo de políticas específicas de controle. (…) assediadas pelos braços policiais do Estado, sob a justificativa de combate ao tráfico.” (2003, p.32).

Com a 18ª Emenda à Constituição norte-americana, foi  insti­tuído a proibição total da produção, circulação, estocagem, importação, exportação e venda de bebidas alcoólicas em território estadunidense. Desta forma, surge a abertura de um campo fértil no qual brotaram inúmeras organizações ilegais que se dedicaram a suprir o mercado ilícito criado em conseqüência da Lei Seca. Floresceram as máfias, como a chefiada pelo lendário Al Capone, e as agências governamentais dos EUA, elaboradas para perseguir o tráfico de álcool. Até ser revogada em 1933, a Lei Seca foi responsá­vel pelo fortalecimento do crime nos Estados Unidos e pelo crescimento dessas agências e da burocracia estatal de coerção.

Inevitavelmente, dada a influência dos EUA e sua política externa, evidencia-se uma aceitação internacional do modelo de repressão norteamericano como o mais “adequado” para enfrentar a produção e o comércio ilícito de drogas psicoativas.

Internamente, alguns anos depois, a revogação da Lei Seca, em 1933, não significou um retrocesso nas políti­cas repressoras de governo. Ao contrário, a relegalização do álcool foi acompanhada pelo endurecimento das medidas legais sobre psicoativos já proibidos (como a cocaína) e outros que ainda não sofriam restrições diretas (como a maconha). Na década de 1960, o gradativo aumento do uso de heroína entre a população afro-americana foi o estopim para uma nova e ampla associação entre depravação moral e a degradação física.

Em 1972, o então presidente dos EUA, Richard Nixon passou aidentificar os psicoativos ilícitos como inimigos nº 1 da América e, em conseqüência, uma ­ampla guerra às drogas. Sua intenção foi aprofundar as medidas coercitivas por meio do cres­cimento das ações policiais de busca e apreensão de drogas ilegais e do combate aos grupos clandesti­nos e às redes de tráfico. Passou a se aceitar, de forma oficial a existência de países produtores de drogas ilícitas e países consumidores, atitude que se enquadrava no papel de exteriorizar o problema do tráfico de drogas, colocando Estados e regiões do então Terceiro Mundo como agressores e os EUA na posição de vítima: criminosos asiáticos e latino-­americanos levariam heroína, cocaína, maconha e LSD para corromper a juventude norte-americana. Surge daí uma deflagração da guerra explícita ao tráfico de dro­gas, indústria que crescia mundialmente tomando o rosto do contemporâneo narcotráfico, que signi­ficava repressão interna e operações internacionais de alcance cada vez maior.

Mesmo assim, a proibição internacional dos psicoativos não havia coibido a produção, comercialização e uso dessas substâncias; muito pelo con­trário, possibilitou o crescimento contínuo de um gigantesco mercado ilegal que motivava, por sua vez, o fortale­cimento das agências e das leis destinadas a perse­guir essa economia ilícita.

Das penumbras da ilegalidade de inúmeros psicoativos verificou-se o surgimento de um promissor negócio de proporções globais. O narcotráfico na América, com suas características de importante empreendimento ilícito, começava a tomar forma. Conexões surgiam, aproxi­mando máfias há muito estabelecidas nos EUA, gru­pos clandestinos que passavam a operar desde as comunidades de imigrantes latino-americanos e caribenhos na Flórida e em outros estados e organizações traficantes sediadas em países da América Latina.

Segundo Rodrigues, o sistema se dava através de cinco elementos:

“a) Os centros de consumo: (…) junto às metrópoles dos Estados Unidos estavam as principais cidades lati­no-americanas que, com suas características cosmo­politas, estavam sintonizadas com os movimentos da cultura jovem internacional e com o consumo de substâncias psicoativas.” (2003, p.50).

“b) A sedução econômica: para faixas pauperizadas das populações latino-americanas, os lucros prove­nientes do narcotráfico, um negócio em franca ex­pansão, eram atraentes e, para muitos, a única oportunidade de elevação do padrão de vida.” (2003, p.51).

“c) As vantagens latino-americanas: (…) questões geográfico-climáticas propícias, (…) cultivo (…) existência de práticas sociais já desenvolvidas, (…) a cultura milenar das folhas de coca nos Andes (…) tradicionais circuitos de ilegalidade (como o contrabando e o tráfico de pedras preciosas) que consti­tuíram know-how para as organizações narcotraficante que se formaram.” (2003, p.51).

“d) O proibicionismo: o fato de a maioria dos Estados latino-americanos haverem se comprome­tido com a tônica legal internacional da proibição aos psicoativos produziu um poderoso negócio ile­gal, de repressão inviável e imensamente lucrativo.” (2003, p.51).

“e) A tecnologia bancária: há uma ligação indissociável entre a economia clandestina das dro­gas psicoativas e a economia legal no planeta.” (2003, p.51).

Tuda essa rede e estrutura possibilitou que os cahamdos “narcodólares”, cuja origem ilegal se apaga após serem feitos de­pósitos e transações financeiras que envolvem gran­des bancos e paraísos fiscais, tomam-se legais, sendo reaplicados em negócios clandestinos e não-clandes­tinos.

Deste modo, passa-se a estruturar a rede do narcotráfico em duas “teias”: a competitiva e a oligopólica. A teia competi­tiva, dividida em duas etapas, compreenderia, num extremo, as fases de produção da folha de coca e da pasta base, e noutro, a distribuição e venda ao consumidor. Aqui, em ambas as pontas, há muitos pequenos grupos em constante e acirrada disputa pelo mercado, o que redunda em grande violência. A teia oligopólica, por sua vez, se comporia de um reduzido número de grupos fortemen­te hierarquizados e enxutos, que evitam o choque direto entre si e controlam a fase mais rentável do negócio – a transformação da pasta base em cocaína pura para posterior venda aos grupos atacadistas. Isso, devamos lembrar, numa situação de oligopólio, onde os atores não são muitos. Mas, isso não impli­ca, efetivamente, a existência de um acordo para a manutenção de preços.

Os narcotraficantes e seus recursos:

“a) Recursos financeiros: uma organização narcotraficante, especialmente do setor oligopólico, deve ter acesso a abundantes recursos financeiros para reinvestir no negócio (em infra-estrutura, sa­-lários, subornos, compra de produtos químicos para o refino da cocaína, reservas para suportar possí­veis confiscos). (…) As organizações mantêm uma estreita relação com a economia legal, o que implica comumente a abertura de ne­gócios lícitos que servem de fachada e instrumento para a lavagem de dinheiro , ou seja, a incorporação dos narcodólares à esfera legal da economia. As operações financeiras de mercado de capitais e os depósitos em bancos de paraísos fiscais são alternativas muito utilizadas pelas empresas narcotraficantes para escamotear a origem do dinheiro.” (RODRIGUES, 2003, p. 58-59).

“b) Recursos coercitivos: (…) Quando há problemas entre dois gru­pos narcotraficantes, pode haver uma negociação direta que evite o conflito ou, senão, um embate que defina o vencedor. Dentro de cada organização, por sua vez, existem códigos de conduta muito rígidos que visam evitar o vazamento de informa­ções; uma traição significa punição rápida e severa (em geral, a morte do traidor).” (RODRIGUES, 2003, p.59).

“c) Recurso a serviços fundamentais: uma em­presa narcotraficante deve contar com o apoio de funcionários qualificados (advogados, administra; dores de empresas, químicos, financistas, pilotos de avião) e não-qualificados (mulas, trabalhadores dos laboratórios, motoristas, seguranças pessoais, vigilantes privados), que, com suas habilidades, con­tribuem para a manutenção dos negócios.” (RODRIGUES, 2003, p.60).

“d) Recurso “Evitar a repressão”: um grupo narcotraficante deve se preocupar em estar livre dos ataques das forças repressoras do Estado. (…) 1) subornos e corrupção: 2) assistencialismo e conquista de confiança (…) Formam-se verdadeiros bolsões de poder nos quais o Estado não entra, a não ser eventualmente. (…) esses bolsões surgem como Estados simbióticos, que vivem da proibição das drogas psicoativas e crescem mediante o fracasso das investidas estatais em combatê-los. Além disso, es­ses Estados tecem relações com as instituições pú­blicas, por meio do apoio a deputados, senadores (as narcobancadas) e candidatos a cargos majori­tários (prefeitos, governadores e presidentes) que defendem interesses dos narcotraficantes. (…) Mais do que filantropia, as obras dos chefes narcotraficantes têm como objetivo conquistar a simpatia e a dependência da população, comprando assim sua fidelidade. (RODRIGUES, 2003, p.60-62).

Chegando cronologicamente no início dos anos 1980, as confe­rências entre os então emergentes narcotraficantes colombianos se deram com o objetivo específico de criar algo como uma força comum de resistência aos seqües­tros promovidos pelo grupo guerrilheiro M-19 e que ameaçavam parentes dos novos-ricos ilegais.

Os chefes das organizações narcotraficantes (principalmente bolivianos, no período) co­mandavam grupos com as características das em­presas ilícitas do setor econômico oligopólico. A frente de estruturas muito enxutas, esses chefes eram os únicos a conhecer todos os detalhes de seus negócios, preservando um dos mais importantes recursos em um negócio ilícito: o se­gredo. Cercado de poucos assessores diretos (em geral parentes e amigos íntimos), os capos concentravam em si as informações que acessavam os con­tatos e as redes de distribuição internacional de psicoativos, tornando-se eles próprios vitais para o funcionamento da empresa. Em geral, esses homens, antes de se dedicarem ao tráfico de drogas, acumularam experiência em outras atividades ilícitas.

 

Os empresários narcotraficantes construíram suas próprias organizações, desenvolvendo maior ou menor solidariedade en­tre si, mas nunca constituindo os cartéis municipais de Calí e de Medellín. O desmantelamento das organizações assediadas em Medellín após as mortes de Escobar e Rodríguez Gacha (ainda em 1989) e da prisão de Fabio e Jor­ge Ochoa (respectivamente em 1990 e 1991) não significou um grande abalo na economia ilegal do narcotráfico colombiano.

O tema do comba­te às drogas, há muito presente na sociedade estadunidense, consolidou a posição de questão de segurança nacional nos anos 1980, reforçando as políticas de combate frontal ao tráfico em paí­ses considerados produtores e influenciando eco­nomias narcotraficantes de diversas regiões do continente.

 

Bibliografia citada e consultada:

RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino, 2003.