Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues. – Reflexão para a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

Por Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues.
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MATEUS 25,31-46 (ANO A)
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Chegamos ao trigésimo quarto domingo do tempo comum, o último do ano litúrgico, o qual vem intitulado como Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. Se trata de um título, a princípio, perigoso, uma vez que a tendência é, de imediato, imaginá-lo como um rei semelhante aos reis deste mundo, e atribuir-lhe trono, cetro, coroa e poder, como normalmente vem representado nas diversas imagens feitas para representá-lo, escondendo a sua principal característica: o amor serviçal.
Se concebermos Jesus Cristo, Rei do universo, como um homem forte, potente, sentado em um trono ornado de ouro, com cetro na mão, ditando, julgando e ordenando uma imensidão de serviçais, guerreando, vencendo e subjugando inimigos, estamos imaginando o rei-messias esperado pelos judeus do seu tempo, e rejeitando Jesus de Nazaré. Infelizmente, boa parte do cristianismo acabou caricaturando a realeza de Jesus, atribuindo-lhe os traços de rei que nunca foram seus.
Mais do que no título litúrgico da festa, focaremos a nossa reflexão no texto evangélico que a liturgia propõe para a solenidade neste ano: Mt 25,31-46. Trata-se da conclusão do último discurso de Jesus, o chamado discurso escatológico, um trecho normalmente conhecido como o “julgamento final”. É um texto exclusivo do Evangelho segundo Mateus, com fortes traços apocalípticos, o que pode dificultar a sua compreensão.
O evangelho apresenta uma cena de juízo conduzida pelo “Filho do Homem” em forma de parábola. É importante recordar que o tema principal do discurso escatológico é a vigilância, ou seja, a espera atenta pelo desfecho final da história; por isso, o texto inicia com essa expressão: “Quando vier o Filho do Homem em sua glória” (v. 31a). O importante não é a forma como virá esse Filho do Homem, mas a sua atitude: “reunirá diante dele todos os povos da terra e separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos” (v. 32). Aqui está a universalidade do juízo e do alcance da mensagem de Jesus: todos os povos são contemplados, inclusive Israel, eliminando qualquer privilégio étnico e racial.
A imagem do pastor é usada mais uma vez, pois era muito acessível aos interlocutores de Jesus e à comunidade de Mateus. De fato, era frequente que o mesmo pastor cuidasse de rebanhos de ovinos e caprinos juntos, e no início da noite sempre era necessário separá-los, devido as questões climáticas e também para facilitar o acasalamento, tendo em vista a reprodução. Certamente, os primeiros ouvintes e leitores da comunidade de Mateus compreendiam muito bem isso.
Ao reunir “todos os povos” (em grego: pánta tá étne), ou seja, toda a humanidade, o Filho do Homem irá fazer a separação. O critério da separação é o mais surpreendente: ao invés de considerar distintivos religiosos, como bom e mau, puro e impuro, digno e indigno, santo e pecador, o critério utilizado por Jesus é o que alguém fez ou deixou de fazer aos “pequeninos” ou “menores” dos irmãos. Não é difícil compreender a quem Jesus se refere como os “menores dos irmãos”, embora algumas correntes de estudos tentem distorcer a mensagem, afirmando que esses menores são apenas os discípulos, os quais foram enviados a todas as nações (cf. Mt 28,16-20). Essa interpretação não se sustenta se considerarmos o evangelho em seu conjunto.
A atenção aos “menores dos meus irmãos” é o critério de participação na vida definitiva, ou seja, o “reino que o Pai preparou desde a criação do mundo” (v. 34). Em Mateus, a mensagem de Jesus foi condensada nos cinco discursos, e é importante perceber o nexo que une esses discursos: o primeiro, o da montanha, foi iniciado com as bem-aventuranças, nas quais Jesus introduzia a sua opção preferencial pelos pobres (pobres, aflitos, mansos, perseguidos… cf. Mt 5,1-12); no último discurso, o evangelho de hoje, essa opção é reforçada e confirmada. Podemos dizer que, do começo ao fim, a mensagem de Jesus tem a atenção aos “menores dos irmãos”, ou seja, toda a sua vida foi marcada por uma clara opção preferencial pelos pobres.
A partir de seis situações (ações) concretas, o evangelho de hoje mostra como alguém pode demonstrar ser cristão ou não: dar comida aos famintos, dar água aos sedentos, acolher os estrangeiros, vestir os nus, cuidar dos enfermos e visitar os presos. Essas foram consideradas as “obras de misericórdia” pelo cristianismo, como de fato são, mas ensinadas mais como conselhos, e não como critério único de pertença à comunidade do Reino, como ensina o evangelho. Por isso, é importante reforçar aqui: estas práticas não são alguns, mas são os únicos critérios válidos para credenciar a pertença ou não de alguém à comunidade do Reino.
O Filho do Homem, enquanto senhor da história, conduzirá o julgamento com um diálogo bastante franco e sincero, iniciado com um convite: “Vinde benditos de meu Pai!” (v. 34a). Em seguida, são dadas as razões pelas quais são chamados de benditos do Pai: “Pois eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar” (vv. 35-36). Chama a atenção a surpresa dos que são tratados como benditos: eles perguntam quando viram o senhor naquelas situações e o serviram. Essa surpresa é registrada pelo narrador para reforçar o caráter desinteressado e gratuito do amor transformado em serviço: fazer o bem, sem olhar a quem! A surpresa aumenta ainda mais quando o senhor diz: “todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (v. 40). Famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes e presos sintetizam todas as categorias de marginalizados. Jesus se identifica a tal ponto com tais categorias, chamando-os de irmãos, de seus iguais.
O diálogo com o segundo grupo se desenvolve a partir da mesma dinâmica, embora com desfecho contrário, a começar pelo convite inicial: “Afastai-vos de mim, malditos” (v. 41). Da mesma forma, o rei dá as razões pelas quais esses são chamados de malditos: não ter feito aquilo que fizeram os primeiros. Também esses recebem a sentença do rei com surpresa: “Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou nu, doente ou preso, e não te servimos?” (v. 44). A resposta do rei só faz aumentar a surpresa: “Todas as vezes que não fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes!” (v. 44). Assim como o terceiro empregado da parábola dos talentos, a sentença de condenação não é consequência de maldades cometidas, mas de omissões. O que há de mais sério na vida do ser humano, e que pode leva-lo à privação da vida em plenitude, é a omissão, a indiferença ao sofrimento do próximo, a carência de ações praticadas em favor dos menos favorecidos.
Como conclusão do discurso escatológico, o texto de hoje reforça e dá um novo sentido à vigilância: não se deve esperar para o encontro com o Senhor na consumação dos tempos, em um tempo remoto; é preciso ter capacidade, maturidade e amor para encontrar-se com Ele todos os dias, fazendo o bem àqueles nos quais o Senhor está presente, já elencados repetidas vezes aqui (faminto, sedento, estrangeiro, nu, doente e preso). A parábola é um alerta para a comunidade de Mateus, tão ansiosa pelo retorno do Senhor, mas incapaz de ver o Senhor já presente nos mais necessitados. Certamente, esse alerta continua válido também para os cristãos de hoje.
O cristão verdadeiro encontra-se com o Senhor todos os dias, não tem medo nem anseia por um encontro final e decisivo, mas sabe que Ele já está aqui conosco. A presença de Jesus, por sinal, é o fio condutor do Evangelho segundo Mateus: do anúncio a José (Mt 1,23) ao envio dos discípulos após a ressurreição: “Eis que eu estou convosco todos os dias” (28,20). Portanto, não razões para a comunidade perguntar quando virá o Senhor; o importante é sentir a sua presença no cotidiano, nas situações concretas da vida.
Todos foram pegos de surpresa: tanto os considerados benditos quanto os ditos “malditos”, pois ou fizeram ou deixaram de fazer o bem. O bem a ser praticado é completamente deve ser completamente desinteressado. O Senhor não marca nem rotula nenhum daqueles nos quais Ele deve ser reconhecido. Basta reconhecer o outro como ser humano, imagem e semelhança do criador; essa é a única marca e não é impressa por nenhuma religião, mas pelo criador de todas as coisas. Ao Senhor, interessa o bem praticado, o serviço doado, o amor praticado! Reconhecer a realeza de Jesus sobre o universo é reconhece-lo em cada irmão e irmã, sobretudo os/as mais necessitados.