Pe. Francisco Cornélio Rodrigues – Reflexão para o IV Domingo da Quaresma

A liturgia deste quarto domingo da quaresma nos oferece mais um texto do Evangelho segundo João. Após contemplar o gesto profético de Jesus denunciando o templo transformado em comércio, no domingo passado (cf. Jo 2,13-25), o texto proposto para hoje faz parte dos desdobramentos daquele acontecimento: Jo 3,14-21; é a parte final do episódio conhecido como o “diálogo com Nicodemos” (cf. Jo 3,1-21).
A enérgica denúncia de Jesus contra a corrupção da elite religiosa de Jerusalém deve ter gerado diversos questionamentos a respeito da sua pessoa. Muitos, certamente, o condenaram imediatamente, outros refletiram a respeito do acontecido. Não resta dúvidas de que entre os fariseus e mestres da época, também havia aqueles que sonhavam com uma religião mais autêntica e menos comercial. Certamente, Nicodemos era um destes; ao invés de condenar, preferiu ir ao encontro de Jesus e escutá-lo, motivado por muitos questionamentos.
Embora o episódio seja chamado de “diálogo”, o que se lê está mais para monólogo, pois o evangelista concede totalmente a palavra a Jesus, a ponto de Nicodemos pouco falar. Como o texto escolhido pela liturgia é apenas a parte final do episódio, nele não há palavras de Nicodemos, mas apenas de Jesus; por isso, é necessário recordar alguns aspectos importantes do que o antecede.
Nicodemos era um homem notável entre os judeus, um fariseu (cf. 3,1), estudioso e bom conhecedor da doutrina judaica, sobretudo da lei. Procurou Jesus na “calada da noite” (cf. 3,2). Sua curiosidade ao falar com Jesus revela sinceridade, respeito e desejo de conhecê-lo melhor. Era alguém que desejava uma boa reforma naquela estéril religião. Mesmo assim não estava pronto para aderir ao projeto de Jesus, pelo menos de imediato. Porém, se distinguia da maioria dos fariseus com quem Jesus se confrontou ao longo do evangelho.
Por precaução e medo de ser repreendido pelos seus colegas de doutrina, Nicodemos não quis ser visto com Jesus, por isso o procurou à noite. Afinal, Jesus tinha, há pouco tempo, desmascarado a religião judaica, ao denunciar o comércio e a hipocrisia praticados na casa que deveria ser do seu Pai (cf. 2,13-22). As primeiras palavras de Nicodemos a Jesus foram de reconhecimento: “Rabi, sabemos que vens da parte de Deus como mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que fazes, se Deus não estiver com ele” (3,2).
As poucas palavras de Nicodemos abriram caminho para uma longa catequese de Jesus a respeito da sua identidade, sua relação com o Pai e sobre como participar da vida em plenitude que Ele veio comunicar. O texto escolhido pela liturgia começa com um dado escriturístico: “Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado” (v. 14).
Sabendo que Nicodemos conhecia bem a Escritura, o evangelista faz Jesus citar explicitamente uma passagem do livro dos Números (cf. Nm 21,4-9), para ilustrar o movimento de descida e subida ao céu praticado por Ele mesmo (cf. Jo 3,13) e, ao mesmo tempo, para ajudar seu interlocutor a compreender a forma contraditória como Jesus será elevado: através da cruz, cujo mistério é aqui antecipado. A citação do livro dos Números é, portanto, apenas ilustrativa. Na verdade, é o próprio evangelista insistindo com sua comunidade para que aceite a cruz com suas consequências, pois ela é necessária para a vivência plena do amor de Deus em seu meio.
Ser levantado se torna necessidade para Jesus, pois o seu projeto de comunicar vida em plenitude à humanidade é irrenunciável. Ele não escolheu a cruz; escolheu ser fiel ao Pai, por amor, até as últimas consequências, e isso implicou passar pela cruz. Por isso, “ser levantado” se tornou necessário “Para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna” (v. 15). O importante é a doação do dom da vida em plenitude, por isso, eterna. Essa é a primeira vez que é mencionada a “vida eterna” (em grego: zoé aionios) no Quarto Evangelho. Crer nele não significa expressar uma fórmula, mas deixar-se guiar pelo seu ensinamento e assumir a sua forma de vida.
Jesus apresenta Deus como aquele que ama incondicionalmente e, ao mesmo tempo, se auto apresenta como a prova desse amor incondicional de Deus, já que é, Ele mesmo, o Filho doado: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (v. 16). O mundo é o destinatário do amor de Deus. Esse mundo é a humanidade inteira. Ao apresentar essa novidade, Jesus estava destruindo um dos principais pilares de sustentação da ortodoxa religião judaica: o privilégio da eleição exclusiva de Israel como povo de Deus e destinatário único de suas promessas.
Com Jesus, a pertença a Deus deixa de ser privilégio de um povo e passa a ser um direito da humanidade. Jesus praticamente inverte o primeiro mandamento: foi Deus quem amou a humanidade sobre todas as coisas! A afirmação “Deus amou o mundo” é única em toda a Bíblia. É uma exclusividade do Quarto Evangelho. A prova maior desse amor da parte de Deus é o seu dom: o Filho unigênito doado ao mundo para que, ao ser acolhido, se estabeleça na humanidade a vida eterna.
É importante recordar e jamais esquecer que “Deus deu o seu Filho” para a humanidade. O mundo inteiro é convidado a receber esse dom do Pai. Quem o acolhe ou crê, recebe a vida eterna. Essa, a vida eterna, não significa uma vida no além. “Eterna” aqui não é a duração, mas é a qualidade da vida de quem acolhe Jesus e seu evangelho. A “vida eterna”  não é um prêmio que os bons receberão no futuro, como pensavam os fariseus e ainda pensam muitos cristãos. A vida se torna eterna quando se faz opção por Jesus e seu projeto. Essa vida é eterna porque é tão plena, a ponto de nem a morte poder destruí-la. Ela começa aqui na terra. À medida que o ser humano encontra sentido para a sua existência, ele eterniza a sua vida. E o sentido pleno da vida só pode ser encontrado quando se consegue viver bem como imagem e semelhança do Criador.
O versículo seguinte reforça o anterior: “De fato, Deus não enviou o seu Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (v. 17). Se o anterior (v. 16) declarava o que o Filho de Deus veio fazer entre nós, esse segundo diz o que não veio fazer: não veio julgar (condenar)! Aqui é necessário fazer uma pequena observação a respeito da tradução do texto litúrgico: ao invés do verbo “condenar”, é mais apropriado usar a expressão “dar sentença” ou o verbo “julgar”, conforme a língua original do texto, uma vez que a condenação seria o efeito do julgamento. Portanto, Deus não enviou seu Filho nem mesmo para julgar. Só condena quem antes julga. Como Deus só sabe amar, não julga e, portanto, não condena ninguém.
Mais uma vez Jesus contradiz a ortodoxia judaica, ao excluir a ideia de Deus como um juiz. Obviamente, quem esperava um messias juiz que viesse ao mundo para separar os bons dos maus, os puros dos impuros e, assim, salvar os primeiros e condenar os segundos, não poderia acreditar no Deus que Jesus veio revelar: um Pai louco de amor, apaixonado pela humanidade, a ponto de dar o próprio Filho. Quem julga e condena são os próprios seres humanos com suas convicções e crenças falsamente fundadas em nome de Deus. O Deus de Jesus nem a juízo leva. Enquanto os homens julgam, Deus apenas justifica, ou seja, apenas salva, porque de quem é amor só pode sair amor.
O mesmo Deus que doou livremente o seu Filho, deu também liberdade à humanidade, de modo que essa pode acolher ou não o seu Filho, Jesus. A acolhida se dá pela fé, uma adesão profunda capaz de deixar-se conduzir pelo seu amor.  Por isso, Jesus disse: “Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito” (v. 18). O ser humano que rejeita a oferta de vida em plenitude que é Jesus, fica privado da qualidade de eternidade em sua vida e, portanto, estará condenado. Isso não depende de um juízo divino, é escolha do ser humano. Deixar de acreditar no nome do Filho unigênito é se recusar a fazer comunhão com ele.
A parte mais importante do texto e talvez até de todo o Evangelho segundo João está nos versículos 16-18. Os versículo seguintes (vv. 19-21) apenas ilustram e constatam uma triste realidade: a tendência da humanidade em preferir as trevas à luz, retomando o que o evangelista já tinha anunciado no prólogo (cf. Jo 1,9-10). Quem rejeitou a luz foi a própria religião; foram as pessoas religiosas que mais se sentiram sufocadas pela luz verdadeira que é Jesus. A elite religiosa preferiu as trevas, odiou a luz por ter ódio da verdade.
Não obstante a rejeição, a luz como sinônimo de vida em plenitude não deixa de ser ofertada. Aceitar o dom do Pai, Jesus, não significa abraçar uma doutrina, repeti-la e até impô-la, como muito se fez ao longo da história, e ainda se faz até hoje. A oferta que Deus fez e faz é livre, como livre deve ser a resposta. A imposição é falta de segurança e de consistência no anúncio. O Pai simplesmente enviou, doou…. Sua proposta é sempre positiva. Ele não julga, nem condena.
O Evangelho não diz se Jesus conseguiu convencer Nicodemos. Provavelmente sim, pois ele aparecerá em mais dois episódios, sempre tomando partido por Jesus: defendendo-o da ira dos fariseus quando tinha se apresentado como fonte de água viva (cf. 7,50) e ajudando no seu sepultamento (cf. 19,39). Certamente, o diálogo com Jesus lhe comoveu. Mesmo que não tenda aderido completamente a Jesus, passou a ver com outros olhos aquela rígida doutrina judaica.
Assim como serviu para Nicodemos, que a face do Pai louco de amor que Jesus apresenta hoje sirva para, pelo menos, compararmos se o Deus em quem acreditamos parece com o Deus de Jesus ou se é apenas aquele das religiões: juiz e soberano, aplicador de castigos ou prêmios. Aceitar que o Deus de Jesus é somente amor pode ser o maior fruto de conversão de uma quaresma!
Roma, 10/03/2018, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues