Pe. Fco. Cornélio Rodrigues – Reflexão para o XIX Domingo do Tempo Comum

Na liturgia deste décimo nono domingo do tempo comum, continuamos a leitura do capítulo sexto do Evangelho segundo João. No texto proposto para hoje – Jo 6,41-51 – Jesus continua seu discurso de auto apresentação como pão descido do céu e alimento para a vida. Esse discurso é a resposta de Jesus à multidão que, alimentada pelo pão partilhado na outra margem do mar (ou do lago), e maravilhada com o sinal cumprido, quis logo proclamá-lo rei, imaginando tirar cada vez mais proveito de suas ações prodigiosas. Jesus refugiou-se, percebendo a interpretação equivocada, mas a multidão o encontrou novamente querendo pão gratuito com fartura. Jesus percebeu tais intenções e, aproveitando a oportunidade, chamou a atenção para a importância de um alimento duradouro e essencial: a sua própria pessoa, pão vivo descido do céu, enviado pelo Pai para dar vida ao mundo.

A auto apresentação de Jesus como pão descido do céu e alimento para a vida eterna foi duramente criticada e questionada pelos seus ouvintes, praticantes da religião tradicional. Para esses, a única referência de pão descido do céu era o maná do deserto, mas aquele era um alimento perecível, tanto que os antepassados que dele se alimentaram, morreram todos. Portanto, a afirmação de Jesus soava como pretensão e afronta. Por isso, o questionamento: “Os judeus começaram a murmurar a respeito de Jesus, porque havia dito: ‘Eu sou o pão que desceu do céu” (v. 41). Quando João menciona “os judeus”, não se refere a todo o povo, mas às autoridades religiosas, quem mais se incomodava com as afirmações de Jesus. De fato, as declarações de Jesus eram verdadeiras ameaças para aquela religião, pois abriam caminho para a humanidade encontrar-se diretamente com Deus, através da sua pessoa, dispensando a mediação dos líderes religiosos.

O murmúrio, mais que um simples lamento, é uma contestação da graça e do poder de Deus, por isso, é um pecado. É a atitude de um povo rebelde e fechado que rejeita a libertação oferecida por Deus, como acontecera no deserto: “Murmuraram contra Moisés e contra Aarão todos os filhos de Israel, dizendo consigo toda a assembleia: antes tivéssemos morrido na terra do Egito! Estamos morrendo neste deserto!” (Nm 14,2). O murmúrio das autoridades religiosas contra Jesus é, portanto, a confirmação do fechamento de Israel, desde o antigo êxodo, à proposta libertadora de Deus, levada a cumprimento em Jesus de Nazaré.

Para desqualificar Jesus e negar a sua condição divina, alegam a sua origem humana e simples: “Eles comentavam: ‘Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?” (v. 42). Como a religião oficial tinha caricaturado Deus como um soberano distante da terra, inacessível ao ser humano, as afirmações de Jesus soavam como absurdas. Segundo aquela mentalidade, era impossível que aquele Deus pudesse se manifestar através de um simples carpinteiro. Sendo habitante da região, com pai e mãe conhecidos, Jesus não tinha credencial de revelador de Deus, segundo a imagem de Deus criada por aquela religião. Como ser imensamente superior, Deus só poderia se manifestar através de sinais extraordinários, jamais em um homem pobre e ousado como Jesus. Se aceitassem Jesus como revelador do Pai, estariam desconstruindo um discurso sustentado há séculos e colocando em risco seus privilégios. Ao associar Jesus a seus pais terrenos, os judeus afirmavam que ele não poderia ter descido do céu.

Jesus não entra diretamente na discussão, pois não sente necessidade de reafirmar a sua origem divina para aquele povo duro de coração. Apenas interrompe o comentário, repreendendo as murmurações:“Jesus respondeu: Não murmureis entre vós” (v. 43). Jesus não quer a perpetuação dos erros de Israel que, historicamente, tem interpretado mal a presença de Deus em seu meio, rejeitando-o inúmeras vezes. Com muita tranquilidade e consciência, Jesus deixa claro que é preciso deixar-se atrair pelo Pai para chegar até ele: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai. E eu o ressuscitarei no último dia” (v. 44). Não obstante as rejeições sofridas, Jesus reforça sua confiança no Pai e a relação intrínseca entre os dois. Se foi o Pai que o enviou, é também o Pai que atrairá cada um a si. Na história da salvação, a iniciativa é sempre de Deus, cuja expressão máxima é a ressurreição. Quem se deixa atrair pelo Pai e vai a Jesus, terá a plenitude da vida, não como prêmio, mas como consequência.

Em Jesus, toda a humanidade tem a oportunidade de unir-se a Deus, através do discipulado gerado pela escuta do Pai (cf. v 45). Ora, escuta o Pai quem se deixa conduzir pela sua Palavra eterna, o seu filho Jesus, cujo convite já ressoava desde os tempos dos profetas. O Evangelho de Jesus é a voz do Pai ecoante no mundo e acessível a toda a humanidade. Ainda como resposta ao murmúrio dos seus adversários, Jesus reforça sua condição de único mediador entre o Pai e a humanidade: “Só aquele que vem de junto de Deus viu o Pai” (v. 46). Somente pode revelar com clareza o rosto amoroso do Pai quem vive em comunhão plena com ele e dele foi gerado. Enquanto a religião oficial comercializava um personagem distante, violento e vingativo, caricaturado de Deus, Jesus em sua simples condição humana revelava de modo claro a identidade do Pai, o qual não exige sacrifícios nem ofertas, mas apenas uma adesão de fé.

De fato, disse Jesus: “Em verdade, em verdade, vos digo, quem crê, possui a vida eterna” (v. 47). Crer (em grego: pistêuo), aqui, significa deixar-se conduzir pelo Evangelho, aceitando-o como único programa de vida. Como consequência, quem faz essa adesão se torna possuidor da vida eterna, a qual não é uma vida no além, como prêmio para quem praticou boas obras, mas um dom oferecido já nesta vida a quem conduz a sua existência de acordo com o Evangelho. O evangelista faz questão empregar o verbo possuir no tempo presente: quem crê já é possuidor da vida eterna. Essa, a vida eterna (em grego: zoén aiónion) é a vida conduzida conforme a de Jesus, a qual nem a morte é capaz de destruí-la.

Mais uma vez se apresentando como pão da vida e alimento perene (cf. v. 48), Jesus põe em questão o maná comido pelos antepassados no deserto, mostrando a ineficácia daquele alimento: “Os vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram” (v. 49). Jesus dá mais um sinal de rompimento com aquela tradição ao falar “vossos pais” ao invés de “nossos pais”, pois ele também era judeu de origem; ele quer se distanciar de uma tradição ultrapassada, fechada em seus próprios conceitos e incapaz de abrir-se ao novo. Todos os que foram alimentados pelo maná no deserto, morreram sem entrar na terra prometida. Mesmo assim, os judeus continuavam “devotos” do maná, considerando-o como o único alimento descido do céu. Jesus quer se contrapor: está sendo dada a oportunidade de provarem um alimento verdadeiramente descido do céu, ele mesmo, como disse: “Eis aqui o pão que desce do céu: quem dele comer, nunca morrerá” (v. 50).

Apresentando-se como pão, Jesus garante a sua eficácia como alimento e deixa ainda mais clara a oferta total de si para a vida do mundo: “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo” (v. 51). Ora, o maná no deserto fora dado a um povo específico e privilegiado que, mesmo assim, murmurava constantemente. A oferta de Jesus é universal, não é mais para a vida de um povo, mas para a vida do mundo. A sua oferta é universal, porque tem a humanidade toda como destinatária, e total, porque é a inteireza do seu ser, é carne e espírito. Aceitar essa oferta é condição para viver eternamente. Se é pelo dom da sua carne que é dada vida ao mundo, também é na condição carnal que o ser humano é chamado a acolher a salvação, quer dizer, nas contradições da existência terrena. Do pão enquanto palavra, passa-se ao pão enquanto carne, abrindo assim o discurso para uma perspectiva eucarística. Porém, a leitura do discurso será interrompida no próximo domingo para a solenidade da assunção de Nossa Senhora.

Acolher Jesus como pão descido do céu é aceita-lo como único mediador e revelador do Pai. Recebe-lo como alimento perene é aceitar o Evangelho como único programa de vida. A insuficiência e ineficácia do maná está ficando cada vez mais clara no discurso de Jesus, assim como o pão partilhado para a multidão no outro lado do mar. Com isso, se torna cada vez mais necessário e urgente que o único alimento, realmente duradouro e capaz de gerar vida eterna é o próprio Jesus na inteireza do seu ser.

Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

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