Padre Cornélio Rodrigues – Reflexão para o II Domingo da Quaresma

Todos os anos, no segundo domingo da quaresma, a liturgia nos oferece como texto evangélico, um dos relatos do episódio tradicionalmente chamado de “Transfiguração do Senhor”. Neste ano, o texto oferecido é o relato do Evangelho segundo Marcos: 9,2-10. Inclusive, esse é o último trecho de Marcos utilizado pela liturgia nesta quaresma. Recordemos que a transfiguração é um episódio narrado pelos três evangelhos sinóticos (cf. Mt 17,1-9; Mc 9,2-13; Lc 9,28-36) e, portanto, de grande relevância para a vida das comunidades cristãs de todos os tempos. Podemos dizer que é uma das páginas mais ricas de teologia dos evangelhos.

 

Para uma boa compreensão do nosso texto, é indispensável recordar alguns elementos do seu contexto, mesmo que brevemente. Trata-se do episódio que sucede à profissão de fé de Pedro na região de Cesareia de Felipe (cf. Mc 8,27-30), e imediatamente ao primeiro anúncio da paixão (cf. Mc 8,31ss). Daí, podemos concluir que se trata de uma resposta de Jesus à incompreensão dos discípulos em relação ao seu caminho de doação da vida por fidelidade aos propósitos do Pai.

 

Mais uma vez, a versão litúrgica do texto nos priva de uma expressão muito importante para uma compreensão mais adequada: o indicativo cronológico “Seis dias depois”, presente no texto original, substituído no texto litúrgico pela genérica e desnecessária expressão “Naquele tempo”. Assim diz o texto: “Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão” (v. 2a). O indicativo “seis dias depois” (em grego: metá hémeras ex) faz referência ao último acontecimento narrado: o primeiro anúncio da paixão e a contestação de Pedro. Ora, Pedro professou sua fé em Jesus como Messias, mas ao mesmo tempo não aceitou o caminho doloroso da cruz, fazendo Jesus repreendê-lo duramente, chamando-o de satanás, por tornar-se um empecilho à realização do projeto de Deus. “Seis dias depois” de ter anunciado a sua morte, Jesus mostra aos discípulos a vida em plenitude; o homem e a mulher foram criados no sexto dia (cf. Gn 1,26-31) e agora Jesus manifesta o ser humano em sua máxima dignidade e realização.

 

Diz o texto que Jesus tomou consigo três discípulos: Pedro, Tiago e João. À primeira vista, parece tratar-se de um privilégio: Jesus escolhe os mais próximos e íntimos, hierarquizando o grupo dos Doze. Porém, se fizermos uma leitura mais atenta, concluímos exatamente o contrário: esses três são os discípulos que mais tem dificuldade de assimilar os ensinamentos de Jesus, são os mais trabalhosos e, portanto, necessitados. Pedro é sinônimo de dureza e fechamento, a ponto de ser o único dos Doze a quem Jesus chamou explicitamente de satanás, por colocar-se como pedra de tropeço em seu caminho (cf. Mc 8,33); Tiago e João, além de ambiciosos, ambos queriam lugares de honra ao lado de Jesus (cf. Mc 10,35-40), tinham temperamento bastante explosivo, a ponto de serem chamados de “filhos do trovão” (cf. Mc 2,17). Portanto, esses três são os discípulos que tinham mais dificuldade em aceitar um messias sofredor e, por isso, os mais necessitados de catequese.

 

O indicativo espacial também é de grande importância para a compreensão teológica do texto: “e os levou sozinhos, a um lugar à parte, sobre uma alta montanha” (v. 2b). Na tradição hebraica, a montanha é, por excelência, o lugar do encontro do ser humano com Deus. Nas culturas circunvizinhas a Israel, imaginava-se que para comunicar-se com a divindade, o ser humano precisava escalar um monte. Assim, a montanha funcionava como um espaço intermediário e necessário: o ser humano era incapaz de subir aos céus, e Deus grande demais para descer até a terra; daí a necessidade de um lugar intermediário para os dois se comunicarem. A montanha passou a ser o lugar de intercâmbio entre o mundo humano e o divino. Essa mentalidade acabou sendo adotada também pelo povo de Israel.

 

No alto da montanha, Jesus “transfigurou-se diante deles” (v. 2c). O verbo grego usado aqui é “metamorfóomai”, cujo significado é ser transformado ou mudado; portanto, Jesus passou por uma metamorfose. Assim, o evangelista está dizendo que Jesus transformou-se, sua forma mudou diante dos discípulos. Ora, diante da incredulidade e resistência em aceitar a morte, Jesus antecipa para eles o resultado da paixão: a manifestação gloriosa do Filho do Homem e, portanto, de Deus nele. Não apenas o rosto brilhou, mas todo o seu ser, inclusive suas vestes: “Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas, como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar” (v. 3). As mesmas imagens e cores da glória de Deus ao longo da história são reveladas em Jesus; a luz é também sinal do que é novo: à medida em que o Reino de Deus vai sendo implantado, o universo todo se renova. Somente Marcos faz referência ao fato de nenhuma lavadeira ser capaz de deixar uma veste tão alva como ficaram as vestes de Jesus. Duas intenções estão por trás desse detalhe: apresentar uma atividade do lar, reforçando a ideia e a importância da comunidade como casa, e mostrar que a vida em plenitude (condição gloriosa) almejada pelo ser humano não pode ser conquistada por esforço próprio, mas somente por graça de Deus, ou seja, tem coisas que só Deus pode fazer.

 

Os personagens do Antigo Testamento mais venerados na tradição judaica entram em cena: “Apareceram-lhe Elias e Moisés e estavam conversando com Jesus” (v. 4). Obviamente, estes personagens representam a Lei e os profetas, respectivamente. É mais uma iniciativa divina para conscientizar os discípulos de que o ensinamento de Jesus está em consonância com tudo o que a Lei e os profetas tinham afirmado a respeito do Messias. Embora o programa de Jesus seja repleto de novidades, não contradiz as Escrituras; é o seu pleno cumprimento. Os discípulos contemplam, mas somente Jesus conversa com Moisés e Elias. Esse é mais um dado de grande importância revelado pelo texto. Ora, a comunidade cristã, representada no episódio pelos três discípulos, não depende mais do Antigo Testamento; em Jesus, a Lei e os profetas encerram-se, chegam ao fim. Jesus é o critério de interpretação da Escritura: o Antigo Testamento só tem sentido se passar por Ele. Por isso, Moisés e Elias nada tem a dizer para a comunidade cristã; essa deve escutar somente a Jesus (v. 7).

 

Pedro, teimoso como sempre, tomou a palavra e, mais uma vez, disse coisas desprezíveis: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias” (v. 5). Duas coisas são reprováveis na fala de Pedro: a primeira, é a nova tentação sugerida a Jesus através do comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi Jesus quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo. A segunda coisa reprovável na fala de Pedro é o seu apego à tradição: “uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias”; infelizmente, Jesus ainda não ocupava o centro na vida de Pedro, mas sim Moisés. Para a tradição hebraica, o personagem mais importante é aquele que é citado em posição central; Pedro insiste com a antiga tradição: está seguindo Jesus, mas ainda coloca Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar Jesus e o seu Evangelho como centro.

 

A falta de sentido nas palavras de Pedro tem uma explicação: “Pedro não sabia o que dizer, pois todos estavam com muito medo” (v. 6). O medo é o grande obstáculo para a comunidade, sobretudo, o medo do que é novo e inesperado. O medo gera incompreensão e insegurança. A comunidade marcada pelo medo não sabe o que diz, diz o que não sabe, diz coisas erradas. O medo bloqueia a sobriedade do anúncio. Onde o medo reside, o anúncio sai distorcido.

 

As palavras de Pedro são tão absurdas que o próprio Deus o interrompe: “Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: Este é o meu filho amado. Escutai o que ele diz” (v. 7). Diante da incompreensão de Pedro, o Pai se manifesta, chamando a sua atenção. Mais uma vez a imagem da luz e da nuvem são evidenciadas como sinais da presença e manifestação de Deus, sendo que o mais importante aqui são as palavras que saem da nuvem: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz”; é praticamente a mesma frase proferida por Deus no momento do Batismo (cf. Mc 1,11), sendo que ali somente Jesus ouviu, enquanto aqui na transfiguração também os discípulos ouvem e ainda são exortados a escutá-lo. O imperativo “escutai-o” (em grego: akúete autú), é dirigido principalmente a Pedro, ainda propenso a escutar mais a Moisés que a Jesus. Escutar Jesus é um imperativo para a comunidade cristã. Quem não o escuta, não pode segui-lo nem testemunhá-lo.

 

Moisés e Elias, ou seja, a Lei e os profetas, já disseram o que tinham a dizer. De agora em diante, só o Evangelho deve falar à comunidade cristã. Ouvir Jesus é compreender sua Palavra e viver as consequências de uma adesão radical a ela, o que Pedro tentava constantemente evitar, por medo da cruz. “E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles” (v. 8); ora, Moisés e Elias foram embora, pois cumpriram as suas respectivas missões; a comunidade cristã já não precisa mais deles, mas somente de Jesus. Já não sai mais nenhuma voz de Deus pela nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também ao Pai! A comunidade precisa sempre olhar em volta de si mesma e perceber que seu único referencial é Jesus Cristo com seu evangelho.

 

Não vendo mais ninguém como referencial além de Jesus, a comunidade renovada é convidada a descer da montanha e novamente encarar a realidade, continuar o caminho com seus percalços e desafios até enfrentar o maior deles: a cruz! A ideia do comodismo não combina com a comunidade cristã, como soou absurda para Deus a sugestão das tendas por Pedro. Jesus pede que não contem nada a ninguém daquilo que experimentaram (v. 9), por respeito aos propósitos do Pai, pois deveriam esperar a Ressurreição, e também porque se a notícia daquela experiência se espalhasse, novamente grandes multidões emotivas e curiosas se aproximariam dele em busca de sinais e milagres, quando na verdade o verdadeiro sinal estava se aproximando: a cruz e a ressurreição.

 

A ressurreição não pode ser compreendida sem antes ser experimentada e celebrada. De fato, compreender o significado de “ressuscitar dos mortos” para quem tem dificuldade de conviver com a morte e a dor é um grande desafio. De todo modo, mesmo ainda marcados pela incompreensão, é salutar a discussão sobre a ressurreição: “comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos” (v. 10). Aqui está um direcionamento para as comunidades cristãs de todos os tempos: as discussões e reflexões só são válidas quanto têm em vista a vida, a ressurreição.

 

Roma-Itália, 24/02/2018, Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues